Sobre ser torcedora de um time de hockey
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Corações partidos sempre nos proporcionam inspiração para produzir coisas boas. Quem não, dentre as favoritas, tem uma música triste, com uma letra que te faz viajar pelas lembranças e momentos de dor? Ou então, aquele filme em que você sabe que o protagonista morre no final, mas ainda assim não cansa de rever, apenas para revisitar o sentimento mais uma vez? Quem nunca ouviu que as melhores obras de arte foram produzidas em meio ao sofrimento?
Artistas como Van Gogh, escritores como Lord Byron e tantos outros usaram de seus momentos de conflito para produzir obras de arte. Quando olhamos para o esporte, não é diferente. As repetidas frustrações fazem os jogadores sonharem mais alto.
E, quando enfim conquistam a taça, a volta por cima vem com um gostinho mais doce. Assim, foi com esse desejo de enfim deixar as frustrações para trás, que grandes campanhas na temporada regular se tornaram a grande conquista da Stanley Cup. Entretanto, a pressão e o nervosismo de ser um time contender pode surtir o efeito contrário.
O Tampa Bay Lightning teve duas grandes decepções nessa década. A primeira foi quando perderam a Final da Stanley Cup para o Chicago Blackhawks, em 2015. Posteriomente, talvez de uma maneira ainda mais frustrante, em 2019, perderam quatro jogos seguidos no primeiro round contra o Columbus Blue Jackets, logo após uma histórica temporada regular, com 62 vitórias, e serem cotados como um dos favoritos naquela pós-temporada.
As expectativas impostas em um time com grande elenco para ganhar o prêmio acabaram tendo o efeito contrário: quando mais se esperava da equipe, mais eles falharam.
Assim como na vida, muitas expectativas são jogadas em cima de nós. Não corresponder a elas deveria ser algo naturalizado, uma vez que muitas dessas cobranças são projeções dos outros em nós mesmos. Entretanto, essas expectativas fazem com que esqueçamos que, no fim, todos somos seres humanos, e, como tal, não somos perfeitos.
Mas, quando se trata de esportes, as coisas não são tão fáceis assim. Nosso sentido de compreensão parece sumir, ainda mais quando o jogo está 0 a 0 no terceiro período e alguém precisa fazer alguma coisa para sair vencedor. Esquecemos, com muita frequência, de que esses atletas que vemos na TV, tão distantes, são pessoas. Mesmo que tenham habilidades que pareçam ser de outro planeta, eles ainda são, de fato, humanos.
Esse costume de colocá-los no pedestal, e até mesmo enxergarmos atletas como semideuses assim como era na Grécia Antiga, aumenta o abismo entre o jogador e os fãs. Contudo, não consigo deixar de perguntar por que, quando Tampa perdeu os quatro jogos do ano passado, doeu tanto em mim, que até passei mal e não pude ir para a faculdade no dia seguinte? Por que a imagem de Nikita Kucherov olhando de longe enquanto os jogadores do Chicago Blackhawks celebravam o recém-conquistado título ainda dói aos fãs, mesmo em quem acompanha hockey há tão pouco tempo?
E por que eu guardarei com tanto carinho e emoção a sequência de Steven Stamkos fazendo um gol no Jogo 3, quando todos nós tínhamos certeza de que ele não iria participar de nenhum jogo dos playoffs?
Quando a força emocional precisa ser maior do que a força física
Nos playoffs de 2020, Tampa teve um caminho bem complicado para ganhar a final. O primeiro oponente seria o Columbus Blue Jackets, a mesma equipe que há um ano encerrou o sonho do Lightning de brigar pela taça.
Após vencer a série por 4-1, o Boston Bruins seria o próximo adversário, no segundo round. Os rivais de divisão deram trabalho. Mesmo assim, Tampa conseguiu vencer a série em cinco jogos.
O próximo adversário foi o New York Islanders, na Final da Conferência Leste. A equipe, que possui uma das defesas mais apertadas da NHL, não seria um adversário tão fácil. Todavia, Tampa conseguiu vencer a série por 4-2, em seis partidas. Enquanto isso, do outro lado da chave, Dallas Stars vencia o Vegas Golden Knights na Final da Conferência Oeste.
A Final da Stanley Cup seria definida entre Dallas Stars e Tampa Bay Lightning. De um lado, a equipe texana possuía um sistema bem fechado, no qual fazer gols era algo extremamente complicado. Tampa conseguiu passar por tudo isso e ganhou a Stanley Cup em seis jogos, 16 anos após o primeiro título, conquistado em 2004.
Essa conquista foi extraordinária por diferentes aspectos. Primeiramente, pois ela ocorreu no meio de uma pandemia, em uma dinâmica de playoffs um pouco diferente. Os times ficaram isolados em uma bolha, em arenas neutras, o que não dava nenhuma vantagem de se jogar em casa, muito menos contavam com a presença das torcidas que sempre impulsionam a equipe.
Segundo, o capitão da equipe, Steven Stamkos, estava afastado por conta de uma lesão agravada enquanto a temporada estava em pausa. Mesmo assim, ele escreveu um dos momentos mais icônicos do hockey.
No Jogo 3, Steven Stamkos entrou na partida, jogou por 2:47 minutos, fez um gol e logo em seguida saiu. Foi a única aparição dele nos playoffs, o suficiente para que o capitão de Tampa eternizasse seu nome na Stanley Cup após levantá-la frente aos seus colegas de equipe.
Aliás, Stamkos ter feito aquele gol entrou para a história do hockey não somente devido sua lesão, mas sim por tudo o que o capitão estava lidando naquele momento. Em uma entrevista para o Lightning Insider, Stamkos revelou que no primeiro round contra o Columbus Blue Jackets sua esposa Sandra sofreu um aborto espontâneo na 21° semana de gravidez. Por conta disso, ele teve de sair da bolha por um momento para ficar com sua esposa e família em um momento tão delicado.
Acredito que são nesses momentos que a humanidade de um atleta é (finalmente) demonstrada. E são nesses momentos que nós, torcedores, lembramos de que eles não são apenas máquinas supertalentosas. Eles são como nós. Eles sofrem como nós.
Então, é aí que a força emocional dos jogadores precisa ser superior à força física. A força física e a brutalidade são duas características clássicas do nosso bom e velho hockey. E para esses homens, que muito provavelmente cresceram em ambientes no qual demonstrar sentimentos é considerado uma fraqueza, saber lidar com esses sentimentos é mais complicado do que ser um saco de pancadas.
Stamkos, naquele momento, estava lidando com duas coisas cruciais na sua vida. Um momento extremamente complicado e sensível em sua família, e a necessidade de deixar no passado as duas decepções do Tampa Bay Lightning, com a chegada dos playoffs.
Certamente, se Stamkos escolhesse sair da bolha e não participasse mais da pós-temporada, para dar apoio completo para sua esposa, alguns torcedores irracionais não reagiriam bem. Afinal de contas, o próprio Tuukka Rask passou por um momento parecido nos playoffs e saiu da bolha. Com isso, ele recebeu críticas de torcedores e até mesmo da mídia. Entretanto, as expectativas dos jogadores favoritos não são feitas para nós.
Por fim, Stamkos escolheu prosseguir com sua equipe, mesmo não recuperado da lesão. E mesmo não estando 100%, ele entrou no rink e jogou menos de três minutos. Porém, esses três minutos foram o bastante para fazer história, com o único gol no único jogo dos playoffs em que ele jogou.
A complexidade de ser um fã
A nossa ligação com um time vai além do que entendemos. Isso pode soar um pouco dramático e místico demais, mas é uma realidade. Esse sentimento de identificação, amor e frustração é algo que precisa de estudo. Assim, essa tal ligação mística torna esses momentos no hockey inesquecíveis. Ainda mais quando um time conquistou o prêmio nesse momento tão difícil da humanidade, onde temos que lidar com o distanciamento das pessoas por conta do coronavírus.
Eu assisto hockey há quase dois anos. Por isso, a minha curta experiência como torcedora talvez não possa ser equiparada com a de uma pessoa que assiste há anos. Todavia, a experiência de ser fã é uma coisa única. A sensação de dependência e frustração é algo único e universal. É algo que todo torcedor sente. Então de certa forma, existe uma uniformidade na experiência de ser fã.
A dependência que sentimos com jogadores literalmente desconhecidos, nossas esperanças e desesperanças depositadas por nós mesmos a eles, e o nosso amor inexplicável por um clube de hockey.
Talvez eu não saiba exatamente como foi perder a final contra o Blackhawks em 2015, assim como não presenciei a conquista da primeira Cup em 2004. Mas vendo hockey e acompanhando a conquista nesse ano único me fez sentir o que todos os torcedores sentem: orgulho, amor e principalmente respeito por todos os jogadores que tiveram de ultrapassar as próprias barreiras emocionais para conseguir trazer essa Stanley Cup de volta à Flórida.
Foto: Tampa Bay Times
21 será o ano dos devils.