LOADING

Type to search

Sobre superação (e outras reflexões)

10 for 10

Sobre superação (e outras reflexões)

Share
Oskar Lindblom foi uma história de superação na NHL em 2020

Uma criança brasileira que cresce correndo por um campo enlameado ou pela sólida terra árida atrás de uma bola provavelmente, à época, tem como seu maior sonho ganhar uma Copa do Mundo usando a camisa canarinho da nossa seleção. Já uma criança canadense que passa meses a fio patinando com um disco no seu stick, no lago congelado atrás de casa, em sua cidade provinciana de Manitoba ou Saskatchewan, deita a sua cabeça no travesseiro (talvez enfeitado com o escudo de sua equipe do coração) e sonha com a glória de levantar a Stanley Cup. 

Entretanto, tal como o futebol é universal e pode dar oportunidades de jovens garotos mudarem não só as suas próprias vidas, como a de suas famílias, com apenas uma bola no pé, conseguir se tornar um atleta de alta performance no hockey demanda tempo e (muito) dinheiro.

Por isso é preciso delicadeza para se falar de jovens, pois o draft nada mais é do que a coroação de mais de uma década de preparação desses adolescentes. Afinal, ao vermos Connor McDavid, Nathan MacKinnon e Alexis Lafrenière espinhentos com seus bonés e jerseys novinhas esquecemos que não podiam sequer comprar o próprio drinque nos Estados Unidos (e em algumas províncias canadenses) à época do seu respectivo draft.

Admito que às vezes eu mesma desejei criticar, e até mesmo critiquei, Fulano ou Ciclano porque não corresponderam às minhas expectativas no gelo. Mas hoje o termo bust (expressão designada ao atleta que não corresponde às expectativas jogadas sobre seus ombros quando foi draftado) me traz verdadeira ojeriza. Será que nós, do alto de nossos sofás, realmente temos o direito de criticar um adolescente que não correspondeu às expectativas que nós, torcedores, atribuímos a ele? 

Por isso, depois de um ano difícil e visando iniciar 2021 e uma nova década com positividade, decidi trazer apenas histórias positivas e de superação. Jovens atletas que superaram expectativas ou doenças ou dificuldades extremas, para se consagrarem enquanto jogadores da NHL (ou quase) na década de 2010. Ao invés de me limitar àqueles que foram draftados entre 2011 e 2020, eu expandi o propósito para também abarcar as histórias que se passaram no decorrer dessa década. 

Tamanho não é documento

Primeiramente, temos casos clássicos de superação, onde o atleta não tinha um determinado pedigree e por isso foi draftado nos rounds mais avançados da seleção. O principal motivo costuma ser o tamanho, afinal, o hockey é, historicamente, um esporte jogado por grandalhões. Atletas de baixa estatura tendiam a ser deixados de lado por mais força e truculência. Essa maré parece ter virado recentemente, mas na década tivemos jogadores que não foram tidos como prospects tão importantes à época de sua elegibilidade.

Perto de muitos outros jogadores Johnny Gaudreau, do Calgary Flames, é um cisco com seus (supostos) 1,75 e cerca de 74 kg. Quando foi draftado no quarto round, o americano era ainda menor, com cerca de 1,68 de altura. Hoje, entretanto, Gaudreau é uma peça importante na equipe que defende e uma estrela na NHL. O winger é parte importante do elenco dos Flames e seu estilo de jogo inspira muitos jovens atletas que usam da tenacidade e rapidez para compensar a estatura.

Brayden Point, central do Tampa Bay Lightning, tinha destaque no major juniors, mas seu tamanho (1,78) era um empecilho para que fosse tido como uma potencial estrela na Liga. O canadense iniciou sua carreira timidamente, mas hoje é um dos principais nomes dos Bolts. Ele também foi um dos mais cotados para receber o Conn Smythe quando a sua equipe venceu a Stanley Cup. Point tem uma carreira brilhante pela frente, e quem sabe um dia poderá seguir os passos do também pequeno Martin St. Louis e fazer parte do Hockey Hall of Fame.

Enfrentando seus demônios

Talvez o caso mais notório na história recente dentre os atletas da NHL foi a redemption tour do goleiro Robin Lehner. O sueco enfrentou problemas na vida pessoal que repercutiram no seu desempenho no gelo. O alcoolismo e o abuso de pílulas para dormir fizeram com que o jogador chegasse ao ponto de ter pensamentos suicidas. Ao começar o tratamento fornecido pela NHLPA (NHL Players Association, o sindicato dos jogadores), ele foi diagnosticado com transtorno bipolar e pôde receber o tratamento adequado. Com isso, Lehner viu sua carreira ser revitalizada com uma campanha de sucesso no New York Islanders e atualmente é o titular do gol do Vegas Golden Knights. 

Quando Scott Darling passou a se destacar na campanha de 2015 que levou o Chicago Blackhawks a sua terceira Stanley Cup na década, a história do goleiro parecia digna de contos de fada. O garoto de Illinois, que havia crescido idolatrando Ed Belfour, havia chegado ao topo. Entretanto, a trajetória até ali havia sido cheia de espinhos e muito dolorosa. Darling foi expulso do programa de hockey da Universidade do Maine por seus problemas com alcoolismo. Ele enfrentou uma longa jornada contra o vício até conseguir chegar à American Hockey League (AHL) e, posteriormente, aos Blackhawks na NHL. 

Em outubro deste ano o jogador Colin Wilson, do Colorado Avalanche, anunciou, através de um relato na Players’ Tribune, que penduraria os patins. Na publicação, o atleta contou sua longa e tortuosa batalha contra o Transtorno Obsessivo Compulsivo, e o quanto tal doença impactou sua vida dentro e fora do gelo. Com a conversa sobre saúde mental ainda sendo um tabu entre os jogadores de hockey, devido ao estereótipo de “durões”, declarações como as de Wilson são muito importantes para que jovens (ou não tão jovens) atletas se sintam mais confortáveis em buscar ajuda quando as coisas não estão bem. Com o fim de sua carreira, Wilson quer retornar aos estudos para ajudar outros atletas no quesito da sua saúde mental. 

F**k cancer

De Mario Lemieux a Phil Kessel, a batalha contra essa terrível doença não é novidade para o mundo do hockey. Entretanto, diagnósticos como o de Oskar Lindblom, do Philadelphia Flyers, são dolorosos para qualquer torcedor, independentemente da equipe do coração.

Em dezembro de 2019, com sua carreira em ascensão e uma posição de cada vez mais destaque no ataque de Philly, o winger foi diagnosticado com Sarcoma de Ewing, uma forma de câncer no osso. Lindblom foi merecidamente ovacionado pela torcida em sua primeira aparição no Wells Fargo Center depois do diagnóstico. Depois de encerrar o tratamento em julho deste ano, o sueco foi declarado livre da doença neste mês de dezembro. Nós do NHeLas mal podemos esperar para ver Oskar de volta ao gelo em laranja e preto! (E a autora que vos fala promete não se importar se ele marcar seu primeiro gol do retorno contra Pittsburgh, embora ela seja torcedora dos Penguins.)

A juventude destes atletas ao serem confrontados com o câncer é um dos fatores mais chocantes, além do fato óbvio de estarem sempre no auge de sua forma física, por conta da natureza de sua profissão. Com uma carta aberta ao Players’ Tribune, o defensor Shea Theodore revelou que um mero teste antidoping durante o Mundial de 2019 mudou sua vida. Isso porque o exame detectou uma anormalidade, que posteriormente foi diagnosticada como câncer testicular. A questão da idade e o fato de ter sido descoberto tão cedo, possibilitaram que o canadense se recuperasse rapidamente. Dessa forma, ele teve a chance de continuar jogando o esporte que tanto ama. 

Embora todas as histórias mencionadas aqui tenham me tocado de alguma forma, a de Olli Maatta foi uma das que mais me afetaram enquanto fã. Recém-chegada ao esporte e à NHL, o diagnóstico do finlandês me chocou, e a rapidez com a qual ele se recuperou da cirurgia me deixou mais surpresa ainda. Entre a constatação do cisto e a cirurgia, o defensor jogou três vezes e passou pouco mais de duas semanas se recuperando após a operação. Com apenas 20 anos, Maatta teve sorte da doença ter sido descoberta tão cedo. O finlandês pôde de levantar a Stanley Cup duas vezes seguidas antes de ter sido trocado (para a tristeza da autora que vos fala). 

O lado torcedora aka os perrengues do meu time

Além de Maatta, outros membros do Pittsburgh Penguins também enfrentaram problemas sérios de saúde nessa década. O melhor jogador da atualidade (ou segundo melhor, desde que McDavid entrou no chat), Sidney Crosby, já passou por maus bocados. Em meados de 2011, duas concussões próximas uma da outra tiraram o canadense da temporada. Passados nove meses, os sintomas ainda persistiam e já se especulava a possibilidade de uma aposentadoria. Em novembro daquele ano ele retornou ao gelo, mas logo se lesionou de novo. No final, descobriu-se que o atleta havia lesionado o pescoço, e o tratamento passou a ser administrado da forma correta. Desde então, Sid the Kid conquistou duas Stanley Cups, um mundial, uma Copa do Mundo de hockey e uma medalha olímpica. Ele ainda foi primeiro a ser capitão de todas as equipes. 

2014 foi um ano complicado para os Pens. Embora, em um nível pessoal e nacional, Sidney Crosby e Chris Kunitz tivessem conquistado o ouro em Sochi pelo Canadá, a equipe enfrentou questões turbulentas. Em janeiro daquele ano, aos 26 anos de idade, o defensor Kris Letang foi encontrado no chão por sua esposa. No dia do ocorrido o atleta foi socorrido por sua sogra, que é enfermeira, mas voou para Los Angeles com a sua equipe como planejado, pois já se sentia melhor. Após alguns dias o diagnóstico foi feito: ele havia sofrido um derrame. A recuperação durou meses, mas o canadense conseguiu se recuperar. Posteriormente, venceu duas Stanley Cup com os Penguins, em 2016 e 2017. 

Nasce o líder de um movimento

O canadense Akim Aliu balançou o mundo do hockey com seu relato aptamente titulado “Hockey is not for everyone” (hockey não é para todos). Nele, o atleta descreveu as inúmeras vezes em que foi vítima de racismo e preconceito dentro do esporte. Voltando àquilo que falei no início do texto, o hockey definitivamente não é para todos, e sim para um seleto grupo de privilegiados. Mas a história de Aliu, em conjunto com os movimentos sociais que tomaram conta do mundo neste ano, foi um passo importante. Foi fundada a Hockey Diversity Alliance, com o objetivo de promover a inclusão e erradicar o racismo da Liga, jogos foram adiados em solidariedade aos protestos Black Lives Matter e alguns jogadores inclusive se ajoelharam durante o hino. É um começo, mas sabemos que a NHL ainda tem um longo caminho a percorrer. 

Com esses relatos, eu convido você, leitora/leitor, para nos contar qual foi a sua história de superação favorita nessa década, tratando-se do hockey ou não. 

(Foto: NBCSports.com/Reprodução)

Tags: