Rússia e seu escândalo no doping
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Se você está acompanhando as Olimpíadas de Inverno de Pequim, deve ter percebido que um dos países mais tradicionais em esportes olímpicos não está presente. Sim, eu estou falando da Rússia. E você também deve ter percebido que existe uma equipe chamada ROC, que nada mais é do que o Comitê Olímpico Russo.
O uso dessa abreviação é uma brecha que permite aos atletas russos competirem nas Olimpíadas enquanto seu país está banido dos Jogos por causa de seu escândalo de doping.
Agora vamos relembrar como a Rússia chegou nessa situação.
Início das investigações
O escândalo de doping veio à tona em 2014, após uma investigação de uma rede de TV alemã. Dois anos depois, um relatório encomendado pela Agência Mundial Antidoping (Wada) encontrou evidências de adulteração nos Jogos de Inverno de Sochi (2014).
O estudo revelou que houve uso generalizado de drogas para melhorar o desempenho e doping sanguíneo praticado por atletas russos do atletismo. O esquema foi incentivado e acobertado por técnicos, médicos e autoridades estatais e esportivas, aponta esse documento.
Em 2016, o Dr. Grigory Rodchenkov denunciou o programa estatal de doping da Rússia, revelando uma profunda rede de enganos e fraudes que ele já havia ajudado a facilitar. Essa revelação levou à proibição total da Rússia dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 e intensificou o debate sobre a corrupção no esporte.
Depois de fugir de seu país por medo de retaliação, o Dr. Rodchenkov agora vive uma vida precária nos Estados Unidos. Ele conta com a proteção de denunciantes e vive com medo de que agentes russos possam um dia bater à sua porta.
Em uma entrevista concedida a um site americano, ele disse que o COI (Comitê Olímpico Internacional) puniu insuficientemente a Rússia por seu programa de doping patrocinado pelo Estado ao não banir totalmente a Rússia dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 em Pyeonchang. Além disso, a maioria das 43 proibições “perpétuas” de atletas russos dopados foram anuladas pelo Tribunal Arbitral do Esporte.
Ademais, a Rússia não aceitou a responsabilidade e procurou retaliar o Dr. Rodchenkov. Autoridades russas assediaram a família do Dr. Rodchenkov, confiscaram sua propriedade e lançaram uma campanha com informações para desacreditá-lo. Três dos atletas russos, condenados culpados, ainda processaram o Dr. Rodchenkov na Suprema Corte do Estado de Nova York por difamação. E o governo russo retaliou o COI e a Agência Mundial Antidoping (WADA) invadindo os computadores do COI e da WADA, divulgando documentos confidenciais e ameaçando punir membros do COI e executivos da WADA.
Como funcionavam as práticas de doping dos russos?
O enorme programa de doping da Rússia, patrocinado pelo Estado, visava encobrir testes de drogas positivos. Um relatório encomendado em 2019 pela WADA por Richard McLaren, um advogado canadense, “descobriu um esquema de doping estatal que envolveu 28 esportes, tanto no verão quanto no inverno, e durou de 2011 a 2015”. Isso inclui adulterar amostras de testes de drogas para encobrir resultados positivos de testes de atletas russos.
Grigory Rodchenkov, que liderou a manipulação de centenas de testes de drogas para os Jogos Olímpicos de Sochi 2014 na Rússia, descreveu muitas das práticas de acobertamento de doping usadas por autoridades russas ao New York Times.
O processo começaria com cada atleta no sistema de doping dando uma amostra de urina limpa – “entregue em garrafas de refrigerante, mamadeiras de fórmula infantil e outros recipientes diversos” – antes de usar qualquer droga. Os funcionários então procederam para garantir que, sempre que ocorresse um teste de drogas positivo, a urina contaminada fosse substituída por urina limpa para produzir resultados limpos.
Em uma operação que ocorria no fim da noite, especialistas russos em antidoping e membros do serviço de inteligência, ilegalmente, substituíram amostras de urina contaminadas por drogas que melhoram o desempenho por urina limpa coletada meses antes, de alguma forma manipulando os frascos supostamente à prova de adulteração que são o padrão no mercado internacional de competições, disse o Dr. Rodchenkov. Durante horas todas as noites, eles trabalharam em um laboratório iluminado por uma única lâmpada, passando garrafas de urina por um buraco do tamanho de uma mão na parede, para estarem prontos para o teste no dia seguinte, disse ele.
Um observador independente da Agência Mundial Antidoping vigiava as instalações durante o dia, mas os russos podiam fazer seu trabalho durante a noite quando ninguém estava olhando. Rodchenkov foi amplamente mencionado em um relatório da WADA sobre o escândalo de doping russo, que levou à proibição inicial da Associação Internacional de Federações de Atletismo e à eventual renúncia de Rodchenkov.
Consequências da descoberta
Mais de 100 atletas russos foram proibidos de participar das Olimpíadas do Rio de 2016. Os jogos ocorreram logo após a reportagem sobre escândalo de doping patrocinado pelo Estado.
O período da reportagem abrangeu dois Jogos Olímpicos: Londres (2012) e Sochi (2014) – e incluiu uma variedade de ações antiéticas, como atletas trocando sistematicamente amostras de urina contaminada, às vezes usando “um buraco na parede nas Olimpíadas de Inverno de Sochi”.
Como resultado, a Rússia foi sujeita a uma variedade de punições. Além de ter perdido várias medalhas anteriores e ter seus atletas banidos dos Jogos de Inverno de 2018 pelo Comitê Olímpico Internacional.
A WADA determinou que a Rússia não poderia usar sua bandeira, nome, hino ou oficiais em competições por quatro anos. A decisão foi a pena mais severa dada até agora.
Essa punição estava relacionada a inconsistências nos dados recuperados pela WADA em janeiro de 2019, do laboratório de Moscou.
O comitê de revisão de conformidade da WADA sugeriu sanções porque a Agência Antidopagem Russa falhou em cooperar totalmente durante as investigações no país.
No ano passado, o Tribunal de Arbitragem do Esporte cortou a proibição da Rússia pela metade, diminuindo para dois anos, após uma apelação.
A proibição termina em 16 de dezembro de 2022. Dito isso, a punição também significa que a Rússia não será representada como um país na Copa do Mundo de 2022.
De acordo com um relatório divulgado pelo The Independent, a Rússia será reintegrada após o término do prazo de proibição, se respeitar e observar todas as sanções impostas, pagar suas multas e contribuições e começar a aderir aos regulamentos da WADA.
O hóquei no gelo não ficou fora dos casos
Seis patinadoras da equipe de hóquei feminina olímpica de Sochi, incluindo sua capitã e principal pontuadora, foram banidas das Olimpíadas para sempre pelo COI em 2017.
A equipe russa que perdeu nas quartas de final em Sochi também foi desclassificada retroativamente como um todo.
Na época, o COI anunciou essa decisão como parte de suas sanções em andamento contra atletas russos que cometeram violações de doping nos Jogos de Inverno de Sochi.
“- Inna DYUBANOK, Ekaterina LEBEDEVA, Ekaterina PASHKEVICH, Anna SHIBANOVA, Ekaterina SMOLENTSEVA e Galina SKIBA cometeram violações das regras antidoping de acordo com o Artigo 2 das Regras Antidoping do Comitê Olímpico Internacional aplicáveis aos XXII Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi , em 2014, e são desclassificados dos eventos em que participaram.
– Os seis atletas são declarados inelegíveis para serem credenciados em qualquer capacidade para todas as edições dos Jogos da Olimpíada e dos Jogos Olímpicos de Inverno subsequentes aos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi 2014.”
A capitã e artilheira Yekaterina Smolentseva, que participou quatro vezes das olimpíadas, estava entre os seis jogadores banidos.
A Rússia foi a primeira nação a ter 100 atletas desclassificados das Olimpíadas de todos os tempos. O time de hóquei feminino russo foi também o primeiro time em qualquer esporte de qualquer nação a ser desqualificado de uma Olimpíada desde 1948.
O que podemos tirar dessa história
Atletas são punidos por doping no cenário esportivo internacional o tempo todo, mas a descoberta do extenso sistema de doping da Rússia foi bastante singular. Houve muitos exemplos individuais, mesmo no atletismo americano, como Justin Gatlin, Marion Jones ou Tim Montgomery. Entretanto, nenhum desses casos isolados foi como as fraudes e encobrimentos institucionalizados e patrocinados pelo Estado que foram expostos no escândalo russo. O COI nunca proibiu completamente uma seleção nacional inteira de competir em uma Olimpíada antes como resultado de doping.
O exemplo mais próximo do que aconteceu com a Rússia, é a seleção da Alemanha Oriental, que competiu de forma independente nas Olimpíadas de 1968 a 1988. Conhecido como Plano Estadual 14.25, foi projetado para ajudar o país comunista a melhor desempenho internacional e proporcionar mais vitórias no maior palco do mundo. “Fomos um grande experimento, um grande teste de campo químico”, disse Ines Geipel, atleta da Alemanha Oriental, sobre o extenso sistema de doping do país. No seu auge, o programa teria empregado mais de 1.500 cientistas.
Portanto, o enorme esquema de doping organizado pelo governo da Rússia não é o primeiro, mas o COI, IAAF, WADA e outros certamente esperam que seja o último. Com todas as falcatruas e esquemas que foram descobertos e mancham a história do esporte mundial, muitos países se tornaram mais rigorosos com seus atletas e procuram sempre mostrar da forma mais limpa possível, a preparação saudável e justa que fazem para se destacar e vencer nas competições olímpicas. O receio de virar uma vergonha mundial, possivelmente fará com que casos nessa escala não ocorram tão cedo em todo o mundo esportivo.
Foto: Reprodução/ nbc.com