Há duas semanas George Floyd foi morto por um policial branco, Derek Chauvin, de forma brutal, enquanto pedia por socorro diversas vezes. A morte de Floyd gerou diversos protestos em várias cidades dos EUA e do mundo contra o racismo e a violência policial sofrida pela comunidade negra.
Todo este acontecimento, somado as denúncias de abuso sofridas pelo jogador Akim Aliu (que vieram à tona em novembro), fizeram surgir diversas questões sobre o racismo no hockey. A maior parte delas em torno da postura assumida pela própria NHL diante de tais absurdos. Além disso, o silêncio ensurdecedor da maior parte dos jogadores da Liga foi bastante criticado.
E então, após todas as observações, passamos a nos perguntar: o hockey é mesmo para todos?
Infelizmente, a resposta para essa pergunta ainda é não. E por que é não? Porque ainda falta representatividade e aceitação desta pela comunidade do hockey, que apesar de já estarmos no século XXI, tem seus valores pautados em uma cultura excludente.
Primeiramente, precisamos começar este texto ressaltando algo muito importante: O hockey ainda possui uma cultura muito forte baseada em valores do século passado, que acompanham o esporte desde seus primórdios. E apesar desta, em alguns momentos, influenciar de forma positiva no esporte, fazendo com que este seja diferente dos demais, ela também se torna excludente. O texto de Akim Aliu, postado no The Players Tribune no dia 19 de maio, apesar de serem palavras difíceis de digerir, aborda muito a parte negativa do que essa cultura do esporte acaba trazendo.
Muito mais do que a NHL
Akim retrata, claramente, todo o preconceito que sofreu durante não só sua passagem na NHL, mas também nos juniores. Dessa forma, acredito que seja importante iniciar a reflexão por aqui. Crianças absorvem tudo que o que escutam, e se desenvolvem sendo um reflexo de tudo que as foi ensinado desde o dia em que nasceram. A partir do momento em que alguém as ensina que pessoas negras não merecem estar dentro do hockey, e o discurso se torna contínuo nos ambientes em que frequentam, a probabilidade de elas o repetirem é enorme.
Essas crianças saem do Pee-Wee hockey para os juniores, passam pelo College Hockey e chegam até a NHL ainda escutando e reproduzindo o mesmo discurso, que continua a ser reforçado por muitos a sua volta. Adquirem também a consciência de que o abuso de poder e discriminação que executam é o correto. E então, futuramente, quando nos deparamos com relatos como os de Akim Aliu e Evander Kane, as coisas voltam novamente a fazer sentido. Esses relatos contam claramente o preconceito racial que estes jogadores sofreram dentro de vestiários, por parte de colegas de time, devido a cor da pele que possuem. Discriminação essa que ainda sofrem exercendo seu trabalho dentro do gelo, e que na maioria das vezes passa impune. Portanto, isso tudo volta a nos provar um outro ponto: a NHL ainda não aceitou por completo a diversidade e representatividade que o hockey tanto precisa.
É muito importante citar que o hockey é um reflexo da sociedade em que vivemos. Essa que ainda é extremamente racista. Ainda existem pessoas no mundo que não entendem que qualquer tipo de discriminação por raça, cor, gênero e sexualidade não são mais bem vindas no século 21. É necessário esquecer esses atos baseados em ódio no passado, para que apenas assim todos possamos evoluir, e deixar, por fim, qualquer tipo de preconceito para trás.
Todavia não podemos esquecer do papel da NHL na causa. Por ser uma Liga que já se declarou abertamente contra qualquer tipo de preconceito, criando um programa que tem o intuito de fazer com que todos sejam bem vindos ao hockey, é papel da mesma agir de acordo com as diretrizes que prega. Desta forma, mostrar que a inclusão proposta vai muito além de apenas trazer visibilidade para estas causas durante o black history month. O racismo no hockey não acontece apenas durante um mês. Ele se faz presente sempre, dos juniores ao profissional. É visível. Os relatos dos jogadores não mentem.
Posição dos atletas
Mesmo com as diretrizes da Liga ser inclusiva, ainda assim, notamos a falta de engajamento e empatia de jogadores e de muitos torcedores com a causa. Quando as acusações de Aliu vieram a público, acumularam-se dias até que a Liga se manifestasse com uma nota de repúdio aos atos. Mas além de uma nota de repúdio, e o envolvimento com a causa apenas durante um mês do ano, nada mais foi feito.
Um jogador que dedicou, e ainda dedica, grande parte de sua vida ao hockey, teve coragem o suficiente para vir a público relatar os abusos e racismo que sofreu durante a sua jornada no esporte e, em troca, obteve o silêncio de muitos times e colegas. E o silêncio nessas horas é ensurdecedor. Deve ser gritante quando se olha para trás, e nota-se que a maior parte da comunidade do hockey, que prometeu estar ali por você, virou as costas para todo o sofrimento e humilhação feitos apenas devido a cor da sua própria pele. E isso é errado de tantas formas.
Por isso é de extrema importância que os jogadores brancos da NHL se pronunciem. Que mostrem aos seus times e torcedores o quanto a conduta racista é errada e precisa ser desprezada e condenada. Existem pessoas que fazem destas figuras os seus ídolos, que os assistem e seguem em mídias sociais. E se partir deles a iniciativa de influenciar de maneira positiva àqueles que os acompanham, e, desta forma, outros acabarem fazendo o mesmo, a mudança finalmente passa a acontecer.
George Floyd: a brasa de uma fogueira
Mas ao falar de esporte não podemos esquecer que tudo está dentro de um contexto. Quando ocorrem acontecimentos de tamanha grandiosidade como os protestos neste exato momento nos EUA, que envolve injustiça e discriminação com uma comunidade que a Liga declarou que apoia, o silêncio volta a ser gigantesco. Ele volta a dizer coisas que não foram ditas, e que passam a ficar claras. Esta é a hora de falar, de se posicionar, pois em momentos como estes o silêncio pode ser conivente com o lado que não é certo.
Alguns jogadores da NHL, que entendem seus privilégios como brancos dentro da sociedade e do esporte, tomaram a iniciativa de finalmente quebrar o silêncio. A primeira mensagem foi feita por Nolan Patrick, no Instagram, se sensibilizando com a morte de George Floyd, no dia do ocorrido. A partir disso, tivemos os tweets de Evander Kane que acabaram movimentando Logan Couture, Blake Wheeler e outros jogadores a virem a público explanar suas condolências e indignação com o sistema racista em que vivemos. E quando um jogador de alto escalão fala, outros também acabam sendo inspirados com a necessidade de expressar, dando assim mais voz à luta. Uma importante ação, mas que não deve ser ovacionada, pois é obrigação destes, como seres humanos e influenciadores, apontar e condenar a discriminação racial.
No dia 31 de maio, às 23:24 (horário de Brasília), a NHL finalmente veio a público se pronunciar e repudiar os atos racistas. Afirmou também que irá trabalhar mais para que hajam mudanças em relação às discriminações ainda propagadas no esporte. E por fim, encorajaram os jogadores e clubes a usarem suas plataformas e privilégios para ajudarem na mudança.
E um destes passos em relação à mudança finalmente foi dado. Na manhã de ontem (08), sob a liderança de Akim Aliu e Evander Kane foi criada a Hockey Diversity Alliance. Contando também com a participação de Matt Dumba, Wayne Simmonds, Trevor Daley, Chris Stewart e Joel Ward, a iniciativa vem com a intenção de promover diversidade no hockey e erradicar o racismo presente no esporte. No pronunciamento, os jogadores voltaram a anunciar que querem não só trazer mudanças positivas para o hockey, mas também para a sociedade.
O comitê, formado apenas por homens, fez surgir alguns questionamentos sobre o porquê de não existirem também mulheres negras sendo representantes. Saroya Tinker, jogadora do Metropolitan Riveters, da NWHL, foi a primeira a se manifestar em relação ao assunto. E seguidamente, revelou em seu twitter que Evander Kane havia entrado em contato para que fosse feita a integração de mulheres no comitê. Outro grande passo em relação a mudança.
Alguns dos posicionamentos, como por exemplo os de Jonathan Toews, Tyler Seguin, e Patrice Bergeron, mostraram a sinceridade nas palavras dos jogadores e ações tomadas que valem a pena serem destacadas (mas não louvadas).
Toews direcionou suas palavras a todas as pessoas brancas, que possuem privilégios devido a cor de sua pele. Foi pontual ao defender os protestos, e o porquê de serem necessários da maneira que estão acontecendo. Por fim, o capitão dos Hawks usou suas plataformas para pedir que seus seguidores, e torcedores do clube, abram os olhos para o racismo e usem a suas vozes para dar um novo rumo a esta situação: um rumo melhor.
Tyler Seguin usou de seu Instagram e Twitter, no domingo, para compartilhar algumas palavras. O jogador demonstrou sua repulsa com os atos racistas crescentes na América e se comprometeu a ser uma voz aliada na luta contra a discriminação racial. Mas o mais surpreendente foi o ver o jogador participar de um dos protestos que ocorreram em Dallas, TX. A cidade, localizada em um dos estados mais segregantes dos EUA, parou neste mesmo dia em uma silenciosa homenagem a George Floyd.
Já Patrice Bergeron, por não ter nenhum tipo de mídia social, utilizou as dos Bruins para se posicionar. Ele lamentou a morte de George Floyd, e a de tantas antes dele, que ocorreram de forma injusta em função da sociedade racista em que vivemos. No entanto, Bergeron foi além das palavras e doou 25 mil dólares para duas instituições nos EUA e Canadá que lutam contra a discriminação racial.
Três jogadores brancos, e alguns outros, vieram a público utilizar suas plataformas, com milhares de seguidores, para serem aliados na luta contra o racismo. E a importância de fazerem isso é absurda. Principalmente no hockey, onde muitas pessoas ainda se recusam a falar sobre o racismo e a reconhecê-lo.
Racismo é pauta no hockey
Em uma entrevista para o The Athletic, Evander Kane ressaltou que muitos ainda não enxergam que o racismo seja um problema no hockey e o quanto ele afeta a vida dos jogadores negros que disputam pela Liga Nacional de Hockey.
“Pessoas acabam dizendo ‘você está procurando’ e ‘você está procurando algo que não existe, é besteira.’ Não é dessa maneira para mim, ou para nós. […] Muitas pessoas gostam de fingir que isso não acontece. Que isso não existe. E esse é o problema.” Evander Kane, para o The Athletic
Ele também voltou a ressaltar na entrevista que muitos dos jogadores negros da NHL pensam da mesma forma. No entanto, a discussão sobre o assunto quase nunca acaba pública por medo das consequências as quais estão destinados. Seja o risco de ter um contrato terminado, ou não ser chamado dos minors para o profissional. O medo de ter a carreira sabotada sempre se encontra presente.
“Como minoria, há mais a se levar em conta para nós. Não importa quantas vezes as pessoas queiram, digam que somos todos iguais e somos todos uma equipe…Ainda não somos tratados da mesma forma. E não apenas no hockey, mas no mundo, que é algo pelo qual estamos lutando: sermos tratados como iguais e obter oportunidades iguais.” Evander Kane, para o The Athletic
Kane voltou a dizer que a melhor maneira de a comunidade do hockey ser uma aliada na luta contra o racismo é conversar sobre as questões raciais presentes no esporte. Aprender com aqueles que têm sofrido com o peso da discriminação na pele todos os dias, usar suas próprias plataformas para serem vozes. E após muito tempo, isso felizmente está acontecendo.
Ontem à tarde, a própria comunidade do hockey se reuniu em um vídeo, publicado pelo jornalista Anson Carter, com o intuito de utilizar as vozes de grandes nomes no mundo do hockey para fortalecer a luta contra o racismo. O vídeo, onde, juntos, todos pronunciam a frase “Você não precisa se parecer com George Floyd para entender que o que aconteceu com ele está errado”, contou com a presença de nomes como Henrik Lundqvist, Patrick Kane, Sidney Crosby, Quinn Hughes, Angela James, Leon Draisaitl e outros mais.
Pronunciamentos são importantes, principalmente vindo de pessoas tão reconhecidas na Liga. Mas mais do que apenas notas de repúdio, este é o momento de agir, aprender, e fazer mais do que apenas um texto, ou postar uma tela preta nas redes sociais. É o momento de usar esta influência para fazer com que o jogo vire.
“A primeira coisa que você precisa entender é que as pessoas são mais preocupadas em parecer uma boa pessoa do que ser uma boa pessoa. Sim, eu disse ontem algo bom, mas é sobre ser um boa pessoa e dar os próximos passos. É falar com nossa equipe e pessoas que trabalham com nossa equipe sobre o próximo passo. O que fizemos foi bom, mas não é o suficiente. É [preciso] chegar e entender. Eu entendo a essência, mas quero saber mais sobre o fundo deste mundo e a sociedade com a qual os negros têm que conviver, mas não se sentem confortáveis em estar.” Tyler Seguin, para o The Athletic
Falta de espaço da Liga
Atualmente, menos de 10% dos jogadores profissionais da Liga são negros. Portanto é preciso entender que existe uma problemática neste número. O problema é muito maior do que apenas o incentivo para a prática do esporte, e envolve questões sociais muito maiores e profundas. Mas, ainda sim, seria muito bem-vindo se a NHL se envolvesse mais com a diversidade no hockey. Se existisse um maior envolvimento com as minorias do que apenas um mês ou uma noite.
Criação de programas, apoio e envolvimento com a causa precisam se tornar coisas presentes no rule book da NHL. Entender que uma iniciativa que tenha o intuito de contar a história dos negros no esporte precisa ser feita com os jogadores negros. Pessoas que possuem o lugar de fala e irão retratar melhor do que ninguém suas experiências. Por fim, tomar a iniciativa de fazer com que esses jogadores falem abertamente sobre a discriminação que sofreram devido a cor da sua pele, e mostrar para seus torcedores que essa conduta é completamente errônea, e não deve se prolongar.
No entanto, apesar de a iniciativa ter sido feita, ainda é difícil aceitar que, em décadas de existência, a NHL só tenha iniciado o Black History Month há 2 anos. É importante contar as histórias de jogadores como Willie O’Ree, e todos os outros que vieram depois dele. As pessoas passam a gostar de um esporte quando se identificam com este. E como um jovem negro irá se identificar com um esporte o qual não possui representação alguma da sua comunidade?
O racismo no hockey é sim um reflexo da sociedade em que vivemos. Mas é necessário que a NHL, como maior Liga de hockey no mundo, admita que existe um problema no fato de que os jogadores negros presentes na Liga sejam menos do que a soma dos dedos de duas mãos juntas. É necessário investimentos por parte da NHL, e de jogadores que possuem grande influência, nas comunidades, para que assim possam existir mais grandes influências no hockey como PK Subban, Evander Kane, Ryan Reaves e Anthony Duclair.
É preciso que a Liga entenda o seu alcance, quantas pessoas se inspiram em seus jogadores, e seja parte da mudança. Mudar a consciência e o posicionamento de um adulto muitas vezes é difícil, mas a sua influência pode alcançar a próxima geração de futuros jogadores de hockey que, atualmente, são crianças e estão em fase de aprendizado. Elas se inspiram em seus ídolos. E se estes nomes começarem a espalhar a mensagem da importância da representatividade, as coisas podem começar a finalmente caminhar para frente.
O hockey é um esporte incrível. Existe uma comunidade inteira de torcedores apaixonados e engajados com seus times e com todos que já fizeram parte do hockey. Mas ainda existe uma cultura que acaba censurando e que é seletiva. Ainda existe o fato gritante de que 80% dos jogadores da NHL são brancos. E coisas assim não são apenas mera coincidência. Histórias como a de Akiu Alim não são as únicas.
Atualmente, o hockey não é para todo mundo. Mas pode ser. Alguém só precisa dar o primeiro passo em direção a mudança para que, só assim, esteja claro que o hockey é para quem quiser ser parte do hockey.
Foto: Reprodução/espn.com