Por que a NHL precisa mudar
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O hockey é um esporte tradicionalista na sua essência. Quando falamos isso, incluímos uma mentalidade cheia de preconceitos ainda presente na comunidade. Além disso, a famosa “hockey culture” ainda exige de seus atletas comportamentos que não cabem mais nos dias atuais. Conformar-se com qualquer coisa que um técnico diga, aceitar comportamentos abusivos e se contentar com pedidos internos de desculpas não devem acontecer em um esporte moderno.
Nas últimas semanas, torcedores, atletas e representantes da mídia começaram a se mostrar dispostos a provocar mudanças e trazer a NHL para o século XXI. Tudo começou com a demissão do comentarista Don Cherry no dia 9 de novembro após ter feito comentários xenofóbicos durante o programa Coach’s Corner da SportsNet.
A ação da emissora após as críticas ao Don Cherry provocara reações que levaram a mais dois casos que tinha sido encobertos pelos próprios times e demais entidades da Liga. O primeiro, a demissão de Mike Babcock pelo Toronto Maple Leafs no dia 20 de novembro, o que permitiu a divulgação de um relatório expondo uma lista que Babcock obrigou o então rookie, Mitch Marner, a fazer dos seus colegas que ele acreditava serem os menos produtivos do time. Mais tarde, o ex-técnico dos Leafs compartilhou a lista com demais jogadores.
Além de Babcock, outro nome vinculado a polêmicas foi o agora ex-treinador do Calgary Flames, Bill Peters. O ex-jogador Akim Aliu acusou Peters de ter praticado injuria racial há dez anos, quando ambos eram parte do time da AHL Rockford IceHogs. Mas o caso de Peters se agravou quando foi descoberto que, no seu tempo com os Hurricanes, ele chegou a abusar fisicamente de um jogador que teve sua identidade protegida.
Estes casos estão ainda apenas no início das investigações. No entanto, muita coisa já se pode dizer tanto sobre Babcock, quanto sobre Peters, além, é claro, de diversas outras histórias de técnicos em ligas menores que abusam fisicamente e psicologicamente de seus atletas. Essas ações foram por muito tempo lidas apenas como “cultura de vestiário”, algo que existe em diversos esportes. Ainda está muito cedo para dizer que teremos de fato uma mudança na cultura do hockey. Mas uma coisa é certa: o ponta-pé inicial foi dado.
Caso Don Cherry
Cherry já vinha sendo criticado por comentários polêmicos desde a temporada passada. Tudo começou quando o comentarista e ex-técnico do Boston Bruins chamou jogadores do Carolina Hurricanes de Bunch of Jerks (Bando de Idiotas) por comemorarem suas vitórias na PNC Arena, as famosas surges.
Na intertemporada, a SportsNet questionou a permanência de Cherry no Coach’s Corner, uma vez que sua audiência começava a reclamar dos comentários polêmicos. Mesmo assim, resolveram renovar seu contrato, afinal, polêmica também traz audiência. Mas o “tudo por audiência” mudou no dia 9 de Novembro, quando disse que os imigrantes no Canadá aproveitam as coisas boas do país, mas não exercem patriotismo. Ele fazia uma referência às homenagens aos veteranos da Primeira Guerra Mundial, comemorado no dia 11 de novembro.
Don Cherry, aos 85 anos, não enxergou seu comentário como xenofóbico, pelo contrário. Ao ser questionado se iria se desculpar, o comentarista disse que havia sido apenas patriota. Por outro lado, a SportsNet publicou uma nota dizendo que os comentários de Cherry eram ofensivos e não representavam os valores da emissora.
Caso Mike Babcock
O Toronto Maple Leafs não teve um bom início de temporada. O time estava com mais derrotas do que vitórias, incluindo cinco derrotas seguidas no tempo regular sob comando de Babcock. Estes números eram exatamente o que os Leafs precisavam passa assinar a carta de demissão do técnico no dia 20 de novembro. Apenas um pretexto, que só iria ser conhecimento do público dias depois.
A cultura de vestiário nos esportes é algo que por muito tempo era secreto. Todo mundo sabia que acontecia, mas ninguém falava a respeito. Técnicos, em uma posição de poder, se sentem no direito de humilhar, agredir física e psicologicamente e praticar os mais mais diversos tipos de abusos contra os seus atletas. No hockey, esta cultura também está vinculada ao machismo. Promove-se uma ideia de que jogadores de hockey são fortes o suficiente para aguentar qualquer coisa. Apesar de ser conhecimento geral que muitos destes atletas jogam machucados, outras coisas também acontecem nos vestiários que são encobertas pelos envolvidos.
O caso de Mike Babcock veio à tona assim que sua carta de demissão foi assinada. Isso aconteceu porque um relatório da temporada 2016-2017 foi liberado à imprensa, confirmando um boato que já existia. Na temporada de rookie de Mitch Marner, Babcock, insatisfeito com o desempenho do atleta, o chamou em uma reunião de portas fechadas e pediu que o jovem jogador fizesse uma lista com os colegas de time que acreditava ser os que menos se empenhavam no gelo.
Na época, Marner obedeceu o treinador, afinal, tinha acabado de chegar à NHL. Entretanto, Babcock mostrou esta lista para os jogadores que estavam na parte debaixo dela, mesmo que o último colocado tenha sido o próprio Marner.
Quando o caso explodiu nas últimas semanas, Marner foi pego de surpresa. Pela primeira vez o jogador falou a respeito para a TSN, contando que no final, ele se sentiu sortudo ao ter colegas de time que o apoiaram e que nenhum dos demais jogadores da lista guardam rancor de algo que não tinha sido culpa dele. Ele também disse que, por ter acontecido tanto tempo atrás, nem se lembrava mais do fato. A entrevista do jogador pode ser assistida, em inglês, aqui.
Mike Babcock acumula reclamações sobre suas condutas éticas quase tanto quanto acumula vitórias. Sendo assim, pode-se até mesmo questionar se o polêmico contrato inflacionado assinado por Marner em setembro também não estaria relacionado com transgressões que o jogador de 22 anos sabia que precisaria enfrentar sob o comando do técnico. Enfim, é possível dizer que o Toronto Maple Leafs finalmente se livrou de um problema. É hora de, quem sabe, mostrar no gelo o quanto estão aliviados.
Caso Bill Peters
O caso de Bill Peters é ainda mais complicado do que o de Babcock. Mesmo uma semana depois, fica difícil prever quais serão as consequências palpáveis do acontecido. No dia 25 de novembro, cinco dias após a demissão do ex-técnico de Toronto, o ex-jogador do Rockford IceHogs, Akim Aliu, publicou no seu Twitter que não estava surpreso com a notícia. Afirmou que já tinha vivenciado, há dez anos, uma situação de racismo dentro do vestiário que foi abafada pelas organizações.
Após os tweets, não precisou de muito para descobrirem que as alegações eram sobre o então técnico do Calgary Flames, Bill Peters. O fato havia acontecido no vestiário do time afiliado do Chicago Blackhawks, Rockford IceHogs. No caso, Aliu relata que o treinador repetidas vezes cometeu injuria racial por causa do gosto musical do então prospect do Hawks. Por fim, ao se rebelar, teve como resposta uma passagem só de ida para as ligas menores.
Após as alegações, o GM dos Flames, Brad Treliving, anunciou uma investigação a respeito do caso. Como consequência, na sexta (29), Peters entregou a sua carta de demissão. Além disso, deixou outra carta se retratando com o GM e a organização dos Flames.
Sobre o caso, o Chicago Blackhawks declarou que apenas tomou conhecimento do fato esta semana. Além disso, afirmou que Aliu nunca entrou em contato com a organização para reportar o ocorrido. Por outro lado, o jogador usou novamente a sua rede social para dizer que não irá fazer nenhum comentário público sobre a situação, mas que aceitou o convite da NHL para discutir o assunto. A Liga, por sua vez, apenas falou sobre as reuniões já agendadas.
Entretanto, o caso de Akim Aliu não é o único que Peters vai ter que explicar. O treinador esteve à frente do Carolina Hurricanes entre as temporadas 2014-15 e 2017-18. Durante este tempo, ele não conseguiu muitas conquistas, e ele com certeza, não era adorado no vestiário. Um ex-jogador dos Canes aproveitou a declaração de Aliu e também usou o seu twitter para acusar Peters, dessa vez, de agressão.
Michal Jordan declarou que Peters agrediu ele e mais um jogador que não foi identificado durante um jogo. E, posteriormente, o técnico agiu como se não tivesse feito nada de errado. Na quarta-feira (27), antes do jogo contra o New York Rangers, o atual técnico do Carolina Hurricanes, Rod Brind’Amour, que já estava na organização como parte da equipe técnica quando Peters estava à frente do time, confirmou que de fato aconteceu a agressão. Além disso, afirmou que os jogadores levaram à administração, que, enfim, tomou a atitude que ele considerava a correta.
Entretanto, Brind’Amour fez a seguinte declaração ao The Athletic:
Os jogadores têm medo de se manifestar e, para ser sincero com você, todo mundo sob o treinador, o gerente, eles têm medo de se manifestar, porque existe uma grande lacuna na estrutura de poder nisso. Eu acho que os jogadores têm muito mais poder agora, e eles percebem isso. Eu acho importante que eles falem sobre o que acham importante porque os tempos mudaram. Eles definitivamente têm mais poder e precisam se manifestar.
Rod Brind’Amour
Ron Francis, GM de Carolina na época, declarou que, de fato, jogadores o procuraram. Afirmou ter levado aos donos a acusação para que as providencias fossem tomadas. No entanto, não iria comentar mais sobre o assunto uma vez que ainda havia uma investigação em curso.
Talvez, as mudanças que a Liga e o hockey, como esporte, precisam para começar a mudar sejam estas pequenas grandes atitudes de coragem que jogadores como Aliu e Jordan tomaram na última semana. Uma nova forma de enxergar o relacionamento treinador-jogador, para formar uma verdadeira equipe com um objetivo em comum. Como disse o técnico dos Canes, os tempos mudaram, e está mais do que na hora da NHL mudar também.
Foto Reprodução: CNN Internacional