Nos bastidores da bolha
Share
Costuma-se dizer, mesmo que de brincadeira, que onde menos se espera “sempre tem um brasileiro.” Sorte a nossa quando este brasileiro em questão também é fã de hockey e nos permite espiar por trás da cortina e acompanhar de perto os bastidores da NHL.
Jefferson Mizuno, 35, é natural de São Paulo, mas hoje mora em Toronto, no Canadá. Ele integrou uma das equipes mais cruciais para o funcionamento da bolha da Conferência Leste da NHL durante os Playoffs da Stanley Cup, e contou um pouco de sua experiência trabalhando lá.
Se você nos acompanhou durante os últimos meses no Instagram, deve ter visto alguns dos registros feitos por este “insider” nas primeiras duas rodadas da pós-temporada. (Caso contrário, aproveite para nos seguir agora mesmo e não perder mais nenhum conteúdo exclusivo!)
Jefferson chegou no Canadá há alguns meses, no meio da pandemia. “Eu consegui entrar porque tenho o documento de residência. Quando cheguei aqui, comecei a trabalhar em construção, aquelas coisas” ele contou. Mas logo um anúncio de vaga para cleaner na Scotiabank Arena chamou sua atenção no WhatsApp. “Achei estranho, porque ia começar a Stanley Cup lá. Eu apliquei e foi muito fácil, eles me ligaram e eu já comecei a trabalhar.”
A princípio, Jeff não imaginava que trabalharia no centro da operação montada pela NHL para o trazer o hockey de volta após a pausa que encerrou a temporada regular. “Eu não sabia que ia trabalhar lá no meio mesmo, no coração da coisa,” ele relembrou a surpresa ao descobrir que ia ver de perto o esporte e o time que tanto gostava.
“Comecei a acompanhar (hockey) desde 2015, e virei um fã dos Leafs. Eu nunca pensei que eu ia gostar de um esporte assim, ainda mais hockey que, pelo menos pra gente ali no Brasil, é uma coisa tão distante.”
Jeff em frente ao logo do Toronto Maple Leafs (Foto cortesia de Jefferson Mizuno)
A função em si era de limpeza. Os protocolos para o retorno da liga previam um ambiente em constante desinfecção para evitar a propagação do novo coronavírus. Isso significava, em suma, passar álcool em tudo, o tempo todo.
“Tinha umas coisinhas que eram desnecessárias, mas o verdadeiro serviço nosso era entrar nos bancos de reservas, no final de cada período, e dar uma geral lá. Ali sim eu acho que era importante — porque o pessoal cospe no chão, sua — e dentro dos vestiários.”
Quando aceitou o trabalho, Jeff não ficou tão preocupado com o risco de exposição ao vírus. Apesar de poder sair da bolha, diferentemente dos jogadores e outros funcionários dos times, por exemplo, os trabalhadores da equipe de limpeza também eram constantemente testados. “A gente já ficou sabendo que teria que fazer exame todos os dias lá, então isso já era um alívio; tinha dias que eu tinha que fazer dois turnos e cheguei a fazer três exames no mesmo dia.”, relembra.
“Pela organização que eu vi lá dentro, aqui na bolha de Toronto, eu vi que realmente ia ser difícil acontecer alguma coisa. Mesmo a gente, que sai, volta pra casa, o resultado (do teste) saía em 40 minutos. Na hora já pegava, cortava, via as pessoas que estavam junto também.”
Além disso, Jeff contou como funcionava a proteção da arena. “Os protocolos de segurança eram de outro planeta. Ninguém entra, era impossível. E lá dentro também ninguém podia ficar perto um do outro, aonde você ia tinha marcações, no chão, e pouquíssima gente trabalhando.”
Jeff trabalhando na limpeza de um dos bancos antes dos jogadores retornarem. (Captura de tela de um episódio de “Inside The Bubble“/NHL)
Todo o cuidado refletiu no sucesso da NHL em concluir a temporada 2019-20 e coroar um vencedor da Stanley Cup sem registrar nenhum caso de COVID-19 entre os jogadores participantes. No entanto, talvez por pouco este esforço não foi por água abaixo ainda nas rodadas iniciais.
“Essa é bomba.” Uma de quantas que nunca iremos descobrir? “O motorista dos Flyers estava com COVID, só que isso aí foi abafado e ninguém falou, né? Aí fizeram o teste com todos os jogadores que estavam no ônibus, com todo mundo. E, ainda bem, não deu nada. Mas o motorista falhou no teste, no caso, aí ele teve que ir pra casa. Perdeu o job, mas que bom que não contaminou ninguém!”
O acesso aos jogadores era mínimo durante as horas de trabalho na bolha. Os funcionários não tinham autorização para ter algum contato ou conversar, “mas a gente sempre falava um ‘oi’, ‘bom dia’, e eles respondiam na medida do possível.
“Aliás, o Crosby é o mais gente boa,” Jeff recordou o encontro com o capitão do Pittsburgh Penguins. “Teve um jogo contra Montreal, não lembro qual foi… e ele é sempre o último a entrar no gelo e o último a sair. Eu fiquei esperando ele sair porque (pensei que aquela seria) minha única oportunidade, era o único jogo (dos Penguins) que eu ia fazer. Então ele passou e eu troquei umas duas palavrinhas com ele, e ele foi muito atencioso, mesmo estando puto porque tinha perdido o jogo.”
Mesmo que as interações com os jogadores dentro da bolha fossem limitadas, a equipe de limpeza estava sempre por perto e ao dispor. Aonde quer que fossem e no que quer que encostassem, era preciso higienizar logo em seguida.
“A gente era meio que babá deles nesse sentido. E os garotos são mimados, hein?”
Para Jeff, o sentimento de trabalhar na casa do Toronto Maple Leafs, ver o time que gosta de perto era também a realização de um sonho. “Todo mundo encarava como um trabalho mesmo, ‘tem que ir lá limpar o banco; tem que fazer hora extra; pô, tem que limpar o vestiário dos Leafs’ — que é um saco porque é todo de carpete, então passar o aspirador lá é fogo, e é gigante o vestiário -, mas pra mim era ‘que legal, vamo lá cara!’ Porque você entrar no gelo, ver os jogadores de perto assim, eu estava num sonho, e principalmente sendo (em Toronto).”
A emoção, no entanto, quase custou sua vaga ainda na rodada de Qualifiers.
“Deve ter sido o Jogo 4 de Leafs e Columbus Blue Jackets. (Tanto que Toronto estava) usando o vestiário dos Raptors, porque ele não era o mandante. Quando foi pro segundo período, eu estava lá porque eu estava limpando — quando eles saem do gelo tem que limpar porque fica cheio de gelo no chão e tem que passar um pano pra não ficar molhado. Quando eles estavam voltando eu falei um ‘vamo aê, pra cima dos caras, let’s go boys!’ E o Nylander até gritou também ‘yeah, let’s fucking go!’ (Eu respondi ainda) ‘yeah, man, let’s go!’ Eu comecei a bater na parede assim, não sei o que deu (risos).
O momento de torcedor não durou muito, mas foi o suficiente para chamar a atenção de um oficial que estava por lá. “Ele falou ‘cara, você não pode fazer isso aqui. Vai que os jogadores estão concentrados e eles perdem a concentração e tropeçam e caem… eu não quero você aqui embaixo mais.’ Chegou meu supervisor, falou comigo e eu perguntei (se já podia ir embora.) Eu pensei que tinha sido demitido.”
Por sorte, a fama de torcedor apaixonado salvou o emprego de nosso insider.
“Aí falaram que eu era brasileiro, (que estava) acostumado com futebol.” Além disso, o fato de que estava fazendo o seu melhor trabalho foi decisivo para que Jeff continuasse na equipe, afinal, ele queria participar de tudo que fosse possível.
“Tudo o que era escala que ninguém queria fazer eu me oferecia, porque eu queria estar lá. Então eles quiseram me manter e ‘passaram um pano’, mas quase que eu dancei.”
A motivação “extra” na volta para o período final, entretanto, parece que surtiu efeito nos jogadores de Toronto. A equipe superou um déficit de três gols, vencendo no overtime e forçando o Jogo 5 na série.
“Aquele jogo ninguém acreditava. Eu assisti ali embaixo, do lado dos zambonis, e foi uma festa lá, parecia que tinha ganhado a Stanley Cup,” ele lembrou. Infelizmente, o resultado não ecoou na partida seguinte, que resultou na eliminação do time da casa. “Não é fácil ser o fã do Leafs não, mas quando eu escolhi eu já sabia.”
Só podemos imaginar se o resultado seria outro caso Jeff estivesse lá no Jogo 5 para oferecer algumas palavras de incentivo ao time.
Um dos gols utilizados em partidas (Foto cortesia de Jefferson Mizuno)
Com Toronto já fora da competição, e sem poder vibrar e comemorar ao lado do gelo, Jeff aproveitou um momento único para demonstrar sua torcida e lealdade a seu time, mesmo que em silêncio. “Eu dei uma encarada no Marchand, que era o meu sonho! Quando eu vi ele passando, os Bruins estavam voltando (do gelo), e eles tinham ganhado o jogo. Ele passou e eu olhei pra ele e dei uma encarada (risos).”
Apesar da rivalidade, Boston foi uma equipe que marcou positivamente sua experiência na bolha. “O time dos Bruins é sensacional. Quando eles entram no gelo, arrepia. No vestiário, a gritaria que eles arrumam lá não é brincadeira. Eles começam a bater os sticks no chão, e o pessoal no outro vestiário escuta porque eles estão ali na porta. O vestiário dos Raptors e dos Leafs estão perto um do outro, então eles intimidam mesmo.”
Após um jogo entre Boston e Carolina no primeiro round, não foi o barulho feito pela equipe que surpreendeu Jeff, mas sim o tamanho de um jogador em particular. “(Os jogadores dos Bruins estavam) saindo, e a gente esperando pra limpar o vestiário. Eles estavam de terno e tudo, passando pelo pessoal. E eu me distraí, olhei pro outro lado, e quando eu olho de novo eu vejo, na minha altura, só uma bunda. Quando eu olho pra cima é o Chara! Ele é gigante, é impressionante a altura do cara.”
Foram muitos momentos marcantes e experiências únicas que Jeff passou na bolha, mas suas memórias não foram tudo que ele levou de seu tempo trabalhando lá.
“No começo, (os registros eram) totalmente liberado, podia tirar foto, podia assistir aos jogos,” Jeff contou sobre a liberdade que tinha para postar conteúdo de dentro da bolha. “Aí depois eles proibiram, proibiu foto, vídeo, só que eu continuei clandestinamente (risos) porque foi mais forte que eu.”
O NHeLas e seus seguidores agradecem!
E os souvenirs não ficaram restritos ao rolo da câmera. Pucks, sticks, entre outros objetos deixados para trás pelos times agora são parte da coleção pessoal de hockey memorabilia de Jeff.
“Estou redecorando a minha casa (risos). Eles estavam deixando tudo lá, principalmente quando foi acabando. Ficou muita coisa pra trás e, como a gente era da limpeza, ou joga fora ou pega. Sticks eu tenho um do Weber, e por sorte achei um inteiro, porque o cara quebra tudo com aqueles slapshots dele! Achei um sobrevivente,” Ele relatou, contente.
Durante o segundo round, todos na bolha de Toronto se preparavam para encerrar as atividades por lá. Isso porque as Finais de Conferência e Final da Stanley Cup seriam disputadas todas em Edmonton.
Jeff sentiu que, como estava quase no fim do período de trabalho, os responsáveis e supervisores das equipes, e a própria NHL, estavam preocupados com os funcionários que tinham cada vez mais tempo livre, já que o número de equipes e jogos era reduzido a essa altura da competição. Isso resultou numa restrição das liberdades que os trabalhadores tinham lá dentro.
“Como estava acabando, eles ficaram com medo do pessoal relaxar. Antes tinha oito times e depois tinha dois só, então tinha bastante tempo vago. Começaram a ficar bem no nosso pé, mas a gente fez o nosso serviço lá direitinho. O que eles bateram na tecla mesmo foi para não assistir os jogos lá em cima mais, na arquibancada, acho que porque (pegaram um funcionário dormindo lá).
“Mas deu certo, e no final foi muito legal também! Estava todo mundo muito orgulhoso e o pessoal da NHL, o tratamento que eles davam pra gente lá era sensacional, eles reconheciam ali que a gente estava na linha de frente.”
A liga de fato não poupou elogios e agradecimentos a todos os trabalhadores que possibilitaram a execução destes playoffs. Na série de vídeos produzidos durante os jogos, “Inside the Bubble”, esse sentimento fica bem claro.
Já estamos a menos de 50 dias para uma possível data de início da nova temporada, no entanto a NHL ainda não confirmou detalhes sobre seus planos para 2021. Especula-se que os times voltem a jogar em suas respectivas arenas, sem fãs, e que o calendário vise reduzir o risco de exposição ao vírus para os jogadores.
Cogita-se também realinhar as divisões de modo a trabalhar com as restrições de viagem entre Estados Unidos e Canadá, e ainda não foi descartada a possibilidade de bolhas em diferentes cidades, em um primeiro momento. É difícil prever a evolução da pandemia nos próximos meses, e a liga espera chegar à melhor solução para realizar uma temporada em segurança.
Sobre suas expectativas para a próxima temporada, Jeff afirmou que não sabe o que esperar, “mas provavelmente acho que eles vão manter o mesmo protocolo.” Uma coisa é certa, se houver outra oportunidade em Toronto de trabalhar dentro da bolha, a NHL pode contar com ele.
“Com certeza! É muito legal ver as coisas acontecendo, eu sempre gostei dos bastidores, o por trás das câmeras. Você ver como funcionam as coisas, acho que a paixão pelo esporte só aumenta.”