Como a falta de regras pode arriscar a vida dos jogadores pós-NHL
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É do consentimento de todo o fã de hockey que o esporte é bastante diferente dos demais. Parte disso são devido às brigas dentro dos rinques de gelo. Estas, que são regularizadas e podem acontecer dentro do período regular de jogo, só tem fim quando um dos jogadores cai no chão. Nesse momento, o árbitro tem de apartar ambos. Constantemente, tem sido assim desde que o esporte existe. Muitos se deslocam até a arena e esperam por momentos como esse, que acabam deixando o jogo “mais interessante”.
No entanto, brigas violentas podem causar sérias contusões que vêm a se manifestar na vida do jogador mais tarde, geralmente após a NHL. Atualmente, existem diversos exemplos de atletas do hockey que vieram a sentir as consequências de uma carreira repleta de knockouts. No fim, a carreira termina da pior forma possível.
A consequência da fama de tough guy no rinque
Um destes jogador é o ex-right winger do St. Louis Blues, Todd Ewen. A princípio, ele teve seu primeiro episódio de brawls dentro de um rinque com apenas 21 anos. Na ocasião, no entanto, ele deixou um dos jogadores do Red Wings definitivamente inconsciente. Assim, criou uma reputação para si mesmo. Da mesma maneira que distribuía socos e golpes, levava alguns muitos. De certa forma, foi o suficiente para que pudessem causar maiores consequências para sua saúde num futuro não muito distante.
Porém, apesar da violência frequente experienciada pelos torcedores dentro das arenas de hockey, a política da NHL em relações às contusões dos jogadores, principalmente na época em que Ewen atuava, início dos anos 90, era completamente escassa. Frequentemente, não incentivava nem os próprios jogadores a procurar ajuda, nem as regras das brawls em jogo.
Ewen se aposentou em 1998, após 11 temporadas atuando na NHL. Inicialmente, os sintomas (relatados mais tarde por sua esposa) se resumiam a breves lapsos de perda de memória. Com o tempo, acabaram evoluindo para algo maior. Seguidamente, a raiva constante, que nunca havia sido presente fora do rinque. No entanto, foi sua esposa, Kelli, quem começou a notar a mudança de comportamento no marido. Ela continha agressões que ela nunca havia presenciado antes. Posteriormente a isso, um dos piores episódios foi quando Todd tentou enforcar a esposa em sua própria casa. A polícia, portanto, precisou intervir.
A partir de então, naquele período, a raiva e as agressões foram substituídas por um estado grave de depressão e reclusão. Enfim, após tantos episódios como os anteriores, ele confessou à esposa algo que desconfiava há algum tempo: que talvez pudesse ter adquirido Encefalopatia Traumática Crônica, a CTE.
Encefalopatia Traumática Crônica, CTE
A CTE é uma condição neurodegenerativa. Grande parte dos especialistas na área acredita que seja desenvolvida devido ao traumatismo craniano repetitivo. A pesquisa sobre a doença se concentrou, na maior parte do tempo, em jogadores de futebol americano. Porém, após alguns episódios, foi descoberta também em jogadores de hockey. Isso se deve às diversas contusões que acabam por atingir a área cerebral dos atletas.
Da mesma forma, em 2010, outro ex-jogador da NHL, Probert, do Red Wings (o mesmo que se envolveu na brawl com Ewen, citada a cima), também foi diagnosticado com CTE. Devido ao trauma, veio a falecer em 2010. No entanto, sua morte foi após falecimentos de outros ex-jogadores também da Liga Nacional de Hockey. Estes todos com idade inferior a 40 anos e diagnosticados com CTE.
Devido aos casos anteriores, em 2013, alguns jogadores da NHL lançaram uma ação coletiva na justiça contra a liga. O motivo foi a negligência desta com as contusões de traumatismo craniano, adquiridas durante as brawls nos rinques.
Simultaneamente, Todd soube da tal petição, mas decidiu não se envolver. No entanto, dois anos depois, o ex-right-winger do St. Louis Blues cometeu suicídio, no porão de sua casa.
A CTE e o Hockey
Lesões no cérebro causadas por golpes vêm sendo estudadas há anos, principalmente nas ligas de esportes. Por isso, a esposa de Todd decidiu enviar o cérebro do falecido marido para o Centro de Contusões Canadenses. O diagnóstico foi feito pela médica Lili-Naz Hazrati. Porém, o resultado terminou por trazer notícias desesperadoras: à princípio, Ewen não possuía CTE.
Desta maneira, a NHL resolveu usar o diagnóstico da médica canadense para se defender contra a ação dos jogadores, que ainda estava em andamento. Os advogados da liga afirmaram que Todd tirou a própria vida por pensar que tinha CTE. Assim, alertar seus jogadores sobre a doença poderia vir a causar pânico e teria a possibilidade de os atletas também tirarem suas próprias vidas. Eles contrataram 19 peritos, com Hazrati dentre eles. Estes, em seus depoimentos, declararam ter dúvidas sobre a CTE ter ligação com os golpes das brawls nas arenas.
A ciência da CTE ainda é bastante contestada. Atualmente, a doença só pode ser diagnosticada postumamente. Porém, como a maioria dos casos foram diagnosticados em atletas, a comunidade científica teme pelos jogadores de certas ligas de esportes. Por fim, ainda com dúvidas, a esposa de Todd Ewen enviou o cérebro do marido para ser testado novamente. Desta vez, em um Centro Médico Neurológico de Boston. Ao fim de 2018, a responsável por refazer os testes no cérebro de Ewen, a médica Ann McKee (especialista mundial em CTE), declarou que, de fato, Todd possuía CTE.
No mesmo ano, cerca de 140 ex-jogadores da NHL já haviam se juntado à ação contra a liga. Mas o status da ação acabou sendo negado, devido aos conflitos entre as leis estaduais aplicáveis. Desta forma, a NHL acabou oferecendo um acordo para os jogadores. O acordo chegou a até 22 mil dólares para cada, e cerca de 75 mil dólares para despesas médicas. De acordo com um advogado que representa os jogadores na ação, a tendência é que a maioria deles acabe aceitando o acordo.
Posição da NHL
Apesar de diversos casos de CTE terem sido diagnosticados em jogadores de hockey, a NHL ainda nega o link entre as contusões durante o jogo com a CTE. Desde a última década, a liga tem se preocupado em certas ocasiões com a saúde dos jogadores no rinque. As brigas não aparentam ser tão agressivas quanto costumavam ser, além de haver mais regras dentro do jogo em relação a golpes na cabeça.
Foi levado a tribunal a possibilidade de os golpes direcionados a região cerebral serem cortados do jogo. Mas o comissionário da NHL, Gary Bettman, diz que isso significaria uma crise. Jogadores maiores destinariam os golpes a jogadores menores durante a partida, levando à penalidade. Por fim, ele considera que, desta forma não haveriam mais colisões de corpos entre os jogadores. E isto é algo que os fãs consideram uma parte emocionante do jogo.
Porém, enquanto a liga continua a negar a possibilidade do CTE estar ligado às lesões de traumatismo craniano em prol da diversão do jogo, diversos jogadores podem estar adquirindo a doença. Muitos provavelmente irão sofrer as consequências dos sintomas devastadores futuramente. Os jogadores fazem a liga, e é necessário que a NHL tome precauções com a saúde destes.
A geração atual e a próxima de atletas de hockey seria eternamente grata. E, consequentemente, acabariam sendo salvos de terminarem no mesmo caminho em que Ewen terminou.
Foto: Reprodução/thehockeynews.com