O assunto do momento, aquele do qual não podemos escapar por nada neste mundo, é a guerra na Ucrânia. Desde que as forças russas invadiram o território ucraniano no dia 24 de fevereiro, o que configura uma violação do direito internacional, os olhares do mundo se voltaram para o Leste Europeu.
Muito embora as ofensivas russas já tivessem ocorrido anteriormente, quando o exército de Vladimir Putin adentrou a região da Crimeia, as novas tentativas de subjugar a soberania da Ucrânia tiveram uma resposta bem diferente desta vez. O seu impacto foi sentido na economia, na política e, é claro, nos esportes.
Uma questão de dinheiro
O resultado político do conflito reverberou na escalada das sanções contra o governo russo, em especial ao presidente do país e seu grupo de oligarcas. Com isso, as movimentações financeiras envolvendo dinheiro russo foram bloqueadas, como, por exemplo, através da exclusão da Rússia no SWIFT, mecanismo de pagamentos internacionais. Até mesmo países que historicamente não costumam se posicionar em situações de conflito, como a Suíça, adotaram essas medidas.
Um resultado imediato do efeito financeiro das sanções, especialmente em relação aos oligarcas próximos ao presidente russo, foi a do Chelsea FC. O proprietário do clube inglês é o oligarca russo Roman Abramovich, que adquiriu o time de Londres há quase 20 anos e foi parte fundamental no estabelecimento dos Blues como uma das potências do futebol internacional. Abramovich primeiramente tentou transferir o comando da equipe para um fundo beneficente, mas com a escalada das sanções o russo finalmente colocou o clube à venda, mostrando que os oligarcas de fato estão sentindo os efeitos das medidas.
O efeito nos esportes
A questão financeira e o clamor do público repercutiram no esporte mundial. A Federação Internacional do Automobilismo (FIA) cancelou seu contrato com os organizadores do Grande Prêmio da Rússia, que normalmente ocorre em Sochi. Ainda nos esportes automobilísticos, a equipe de Fórmula 1 Haas cortou vínculo com seu maior patrocinador, a empresa russa Uralkali, comandada pelo oligarca Dimitri Mazepin. O time ainda demitiu seu piloto russo, Nikita Mazepin, filho do ex-patrocinador.
No futebol, a FIFA retirou a Rússia das eliminatórias da Copa do Catar depois de diversas manifestações das federações da Polônia, Suécia e Chéquia afirmando que se recusariam a jogar contra os russos. Ainda assim, a manda-chuva do futebol só excluiu a seleção russa após forte pressão da comunidade do futebol internacional. Já no vôlei, a Rússia deixará de ser sede do próximo mundial, que ocorreria em agosto, e os times do país foram suspensos de torneios internacionais.
Na patinação no gelo, russos e bielorrussos foram impedidos de competir internacionalmente por tempo indeterminado. A mesma punição também ocorreu em esportes como atletismo, basquete e até mesmo alguns torneios de tênis. Neste último caso, é importante lembrarmos que o atual número 1 do mundo no esporte é um russo, o tenista Daniil Medvedev.
Mas e o hockey?
A Federação Internacional do Hockey no Gelo (IIHF, sigla em inglês) anunciou no dia 28 de fevereiro que as federações da Rússia e de Belarus não participarão de nenhuma das suas competições neste ano. Além disso, o World Junior Championship de 2023 deixará de ser em território russo e não contará com as equipes russas e bielorrussas. Entretanto, o calendário da federação ainda conta com São Petersburgo como a sede do mundial masculino de hockey de 2023.
Na Kontinental Hockey League (KHL), equipes como a finlandesa Jokerit e a letã Dinamo Riga desistiram da competição após a invasão russa. O Jokerit abriu mão de jogar os playoffs da Gagarin Cup, para os quais já estava classificado. Atualmente as únicas equipes não russas na KHL são o Barys Nur-Sultan do Cazaquistão, o Dinamo Minsk de Belarus e o Kunlun Red Star da China.
Além disso, atletas de outros países tiveram pressa para deixar os clubes que defendiam na Rússia, inclusive ex-jogadores da NHL. Dentre eles Markus Granlund, Geoff Platt, Nick Shore, Kenny Agostino e Shane Price, dentre outros. A NHL anunciou ontem que suspendeu suas negociações com a KHL e informou aos seus clubes que eles deveriam cortar quaisquer comunicações com agências e organizações baseadas na Rússia.
Os reflexos na nova geração de jogadores
A atual situação geopolítica terá impacto desde aos possíveis contratos de jovens russos que já foram draftados até aqueles que são apenas prospects. Na primeira hipótese, a falta de comunicação e o rompimento de conversas e negociações entre a NHL e seus clubes em relação à KHL e suas respectivas equipes tornará eventuais negociações e mudanças ainda mais difíceis. Pense na forma como Evgeni Malkin deixou a equipe que o formou para ir para Pittsburgh e multiplique isso pelo impacto causado pelo conflito atual.
Entretanto, quando o agente Dan Milstein anunciou que a Canadian Hockey League (CHL) tinha como objetivo banir do import draft aqueles atletas que eram russos ou bielorrussos, fomos confrontados com uma discussão importante. Até que ponto atletas, neste caso de adolescentes de 16 e 17 anos, podem ser punidos pelas atitudes daqueles, homens adultos sexagenários, que governam seus países?
Milstein é agente de atletas russos importantes na NHL, como Andrei Vasilevskiy e Nikita Kucherov do Tampa Bay Lightning. A CHL não anunciou publicamente que não consideraria russos e bielorrussos no import draft deste ano, mas cancelou a série entre Canadá e Rússia que ocorreria neste ano. Acerca do import draft, o órgão canadense informou que anunciaria o formato do draft de estrangeiros posteriormente. Além disso, a ESPN+ anunciou que não irá transmitir os playoffs da KHL.
Ovechkin e seus laços com o Kremlin
O capitão e principal jogador do Washington Capitals é uma estrela na capital americana, mas seu brilho é ainda maior na sua terra natal, a Rússia. Um dos principais nomes do esporte russo em geral, Alexander Ovechkin é o grande jogador de uma geração vitoriosa do esporte favorito do presidente Vladimir Putin. O jogador externaliza seu apoio pelo presidente russo há muito tempo, inclusive através de postagens em suas redes sociais.
Quando a Rússia ocupou e posteriormente anexou a região da Crimeia em 2014, por exemplo, Ovechkin fez um post onde pedia para que as crianças ucranianas fossem salvas do fascismo. O entusiasmo de Ovechkin para com o seu presidente também apareceu na iniciativa de 2017, o Putin Team, do qual faziam parte outros jogadores como Evgeni Malkin e Ilya Kovalchuk, além de outras personalidades russas. De acordo com o Kremlin, o Putin Team não foi criado por Ovechkin.
Mas o ativismo político do atleta vai além de sua persona pública. Em 2016, quando Ovechkin se casou com Anastasia Shubskaya, filha do oligarca Kirill Shubsky, o casal recebeu um presente de casamento de Putin. O relacionamento próximo do jogador com Putin não é nenhuma novidade, com Ovechkin inclusive afirmando que tem o número de telefone do líder de seu país.
Após a invasão russa à Ucrânia, Ovechkin foi questionado sobre o conflito, mas não elaborou muito além de um comentário evasivo sobre paz. Um comercial popular de Ovechkin com seu companheiro de equipe Nicklas Backstrom foi retirado de circulação. Além disso, a empresa de materiais esportivos CCM tirou os materiais promocionais que incluíam o capitão dos Caps e outros jogadores russos.
Os demais jogadores russos
Muito embora uma grande parcela da discussão se centre em Ovechkin e sua relação próxima com o presidente russo, ele não é o único representante da Rússia. A NHL possui 41 jogadores russos atualmente, espalhados em vários de seus times. O único atleta a se manifestar publicamente, além do próprio Ovechkin, foi o defensor Nikita Zadorov, do Calgary Flames. Zadorov fez um post no seu Instagram pedindo um fim à guerra.
O vocabulário utilizado por Zadorov chamou a atenção, já que o nome oficial dado pelo governo russo à invasão é “Operação Especial”. Além disso, foi aprovada uma lei no país que determina uma pena de até 15 anos de prisão para quem usar expressões como “guerra” ou “invasão” para se referir ao conflito na Ucrânia. Desta forma, Zadorov pode passar a ser boicotado pela federação em eventos futuros, além de correr riscos se retornar ao seu próprio país.
Nem mesmo atletas como Artemi Panarin, que já havia tecido críticas ferrenhas a Putin e demonstrado apoio ao principal opositor do presidente, Alexei Navalny, se manifestaram. A resposta do Kremlin às críticas resultou em um afastamento provisório do jogador do New York Rangers, depois que ele foi acusado de cometer atos de violência contra uma mulher quando ainda jogava na KHL. Quanto à invasão na Ucrânia, Panarin manteve o silêncio.
Algumas considerações finais
Por serem cidadãos de um governo opressor como o da Rússia, onde pessoas são presas e até mortas por se manifestarem contra o Kremlin, é compreensível que muitos desses atletas prefiram o silêncio. De acordo com Milstein, que é agente de muitos dos russos na NHL, seus clientes estão sendo alvo de mensagens xenofóbicas tanto nas redes sociais quanto ao vivo. Milstein é ucraniano e se mudou do país com o fim da União Soviética, no início dos anos 90.
Milstein delineou com clareza o porquê da grande maioria dos russos se manterem em silêncio. Por serem figuras públicas, qualquer comentário negativo sobre o governo russo chamaria a atenção do Kremlin. Entretanto, a grande maioria destes jogadores deixaram suas famílias para trás na Rússia e ser abertamente contrário a um regime autoritário poderia significar colocar seus entes queridos em perigo.
Na última newsletter Hockey With Love, a (nossa amiga pessoal) Gaby foi certeira ao apontar o quão intrínseca a xenofobia é dentro do mundo do hockey. Afinal, ela nos pergunta, por que exigimos um posicionamento apenas dos jogadores russos? Ninguém pergunta aos jogadores canadenses (brancos) a sua opinião sobre as violações de direitos indígenas no Canadá, tampouco aos americanos que já visitaram a Casa Branca sobre a agenda política dos presidentes que a ocupavam. Os demais europeus, como os suecos e dinamarqueses, também não são questionados sobre a situação dos direitos humanos em seus países.
Muitas vezes, porque vivemos, em teoria, em uma democracia liberal com a nossa liberdade de expressão salvaguardada pelo, supostamente, porto seguro do Estado democrático de direito, perdemos o parâmetro de como os governos opressores operam. Aqueles que estão, dia após dia, em público protestando contra essa guerra nas ruas de Moscou, São Petersburgo e demais cidades russas são pessoas extremamente corajosas. Mas, com a integridade física de sua família na linha, você poderia afirmar com convicção que teria coragem para fazer o mesmo?
Foto: reprodução/eurosport.com