O caso Mitchell Miller e o posicionamento dos Coyotes

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Após um ano turbulento e repleto de remarcações em seu calendário, a NHL por fim realizou o Draft 2020. E como em todos os anos, o evento é visto pelos times como uma oportunidade de modificar seu roster. Tudo isso sempre com o objetivo final em mente: a conquista da Stanley Cup ao fim da temporada.

Com o Arizona Coyotes não foi diferente. Já fazem alguns anos que a equipe vem passando por uma grande transição. Dessa forma, reforçar o time com novos talentos é essencial para se manter estável na temporada. Mas não se pode negar que a equipe de Arizona falhou ao selecionar Mitchell Miller no Draft, mesmo após conhecimento sobre suas ações, que vão contra todos os princípios que o time prega. 

No entanto, após a polêmica ter gerado diversas críticas à sua conduta, os Yotes voltaram atrás e optaram por dispensar o futuro prospect. Assim, colocou-se em pauta novamente a discussão sobre o quão longe as equipes de hockey vão para escolher seus talentos, deixando para trás as promessas de serem aliados na mudança positiva da cultura do hockey. 

O ocorrido

Não é de hoje que o Arizona Coyotes tem passado por algumas turbulências. Entre trades, demissões e outros escândalos, o time tem tentado manter-se estável da melhor forma possível. Dessa forma, com a decaída drástica do desenvolvimento da equipe nos últimos anos, o Draft acaba sendo uma forma de reconstruir o time através de novos talentos. 

Apesar das poucas escolhas no Draft 2020, devido a polêmica da violação das regras dos testes pré combine, a equipe manteve 5 dos seus draft picks. Tais quais foram distribuídos do round 4 ao 5. E após as análises feitas pelos scouts, o time deu início a sua participação no evento selecionando Mitchell Miller, um defensor dos programas de hockey juniores dos Estados Unidos.

A princípio, a escolha fez sentido. Isso porque, para reconstruir a equipe, seria necessário também investir em defensores com potencial para colocar o time em jogo outra vez. Mas o que ninguém esperava era que, por trás de todo o talento, Miller possuía um passado repleto de ações vergonhosas. 

Alguns dias após o Draft, o Arizona Central, versão virtual do jornal The Arizona Republic,  publicou uma matéria afirmando que, há quatro anos atrás, o possível futuro jogador dos Yotes havia sido condenado por cometer bullying, racismo e violência física contra um antigo colega de classe. 

Entenda o caso

Em 2016, Miller acabou admitindo seus atos em um tribunal juvenil de Ohio. Ele afirmou no julgamento que foi responsável por intimidar a vítima, Isaiah Meyer-Crothers, a lamber um doce que ele e outro menino haviam limpado em um mictório do banheiro da escola em que estudavam. Devido ao abuso, Isaiah precisou executar testes para hepatite, HIV e DSTs, mas felizmente, de acordo com relatório policial, todos tiveram o resultado negativo. Além disso, a própria vítima e outras testemunhas afirmaram que Miller insultou e agrediu Isaiah constantemente por anos, sempre dirigindo-se a ele através de termos racistas e ofensivos. 

Miller e Hunter McKie, também responsável pelos atos, ficaram sob supervisão do Tribunal de Menores na época, sem ter qualquer tipo de contato com a vítima. Além disso, serviram 25 horas de serviço comunitário, pagaram as custas judiciais e deveriam escrever cartas de desculpas à vítima e à escola onde estudaram.

Atualmente, devido a grande repercussão do caso, Miller se desculpou através de cartas oficiais com todos os times da NHL. No entanto, não demonstrou remorso ou vontade de oferecer um pedido de desculpa para aquele que mais sofreu com suas ações: Isaiah.

As críticas por parte da comunidade do hockey

Após as denúncias virem à tona, o Arizona Coyotes foi gravemente criticado pela mídia e por fãs por escolher Miller no Draft. E as coisas pioraram ainda mais para a equipe quando descobriu-se que os Yotes tinham total conhecimento das ações cometidas pelo futuro prospect

As críticas foram feitas devida a controvérsia cometida pelo Arizona. Isso porque o time já afirmou diversas vezes sobre sua vontade e responsabilidade de contribuir para que a cultura do hockey mude de forma positiva. Ou seja, draftar Miller, tendo conhecimento de seus atos, vai contra todos os princípio que a nova gerência do time prega. 

Ken Campbell, do Sports Illustrated, também questionou fortemente a decisão da equipe. Ele afirmou que, apesar dos Yotes terem tomado a decisão de draftar o jogador, era também bastante problemático que outros times também tivessem estudado a possibilidade fazer o mesmo:

“Há justificadamente muita indignação lá fora com a publicação da história de hoje sobre Miller. E ao conversar com os olheiros, esta é uma história que é conhecida nos círculos do hockey há algum tempo. Na verdade, Miller foi elogiado por muitos pelo o que fez e por se posicionar. E enquanto os Coyotes estão sendo enterrados em uma avalanche de má imprensa por isso, o fato é que há muitas outras pessoas no mundo do hockey que estavam dispostas a permitir Miller em suas equipes e em suas organizações, mesmo após o ocorrido.”

Os posicionamentos do Arizona

Em um primeiro posicionamento oficial da equipe, feito através do CEO do time, Xavier Gutierrez, o Arizona Coyotes tentou justificar o porque seria importante ter Miller no time.

“Nossa missão fundamental é garantir um ambiente seguro – seja nas escolas, em nossa comunidade, nas pistas de gelo ou no local de trabalho – livre de bullying e racismo. Quando soubemos da história de Mitchell, teria sido fácil para nós demiti-lo – muitas equipes o fizeram.  Em vez disso, sentimos que era nossa responsabilidade fazer parte da solução de uma maneira real – não apenas dizendo e fazendo as coisas certas nós mesmos, mas garantindo que os outros também sejam”, diz o comunicado.

Gutierrez ainda continuou dizendo que, de acordo com as políticas do time em relação à inclusão e diversidade, eles acreditam que estão “na melhor posição para orientar Mitchell a se tornar um líder para esta causa e prevenir o bullying e o racismo agora e no futuro.”  O CEO da equipe finalizou o comunicado afirmando que gostaria de fornecer a Miller os recursos necessários para sua mudança e crescimento.

“Como organização, deixamos nossas expectativas muito claras para ele. Estamos dispostos a trabalhar com Mitchell e colocar no tempo, esforço e energia e fornecer-lhe os recursos e plataforma necessários para enfrentar o bullying e o racismo. Isto não é uma história sobre desculpas ou justificativas.  É uma história sobre reflexão, crescimento e impacto na comunidade. Um verdadeiro líder encontra maneiras de cada pessoa contribuir para a solução.  Todos nós precisamos ser parte da solução.”

No entanto, mesmo com o pronunciamento e justificativa, a equipe de Arizona continuou sendo duramente criticada pela decisão. Principalmente após o relato da família de Isaiah, afirmando que o futuro prospect nunca se desculpou pessoalmente por todo o trauma que causou a vítima. 

“Todo mundo acha que ele é tão legal por ir para a NHL, mas eu não vejo como alguém pode ser legal quando você implica com uma pessoa e a intimida a vida toda”, afirmou Isaiah ao Arizona Central.

Após algumas conversas com a família Meyer-Crothers, e melhor entendimento sobre a situação, o Arizona por fim mudou seu o posicionamento. Assim, através de um comunicado oficial feito na quarta feira (29), afirmou que a melhor escolha para o time foi romper vínculos com Mitchell Miller.

“Decidimos renunciar aos direitos de Mitchell Miller, com efeito imediato”, confirmou Xavier Gutierrez. O CEO ainda disse que o time não tolera esse comportamento, mas que sua intenção inicial era fazer que Mitchell se tornasse responsável pelos seus atos e aprendesse com eles.

“Antes de selecionar Mitchell no Draft da NHL, estávamos cientes de que um incidente de bullying ocorreu em 2016. Não toleramos esse tipo de comportamento. Mas abraçamos isso como um momento de ensino para trabalhar com Mitchell para torná-lo responsável por suas ações e dar-lhe uma oportunidade de ser um líder em esforços anti-bullying e antirracismo. Aprendemos mais sobre todo o assunto, e mais importante, o impacto que teve em Isaiah e na família Meyer-Crothers. O que aprendemos não está alinhado com os valores fundamentais e visão de nossa organização e leva à nossa decisão de renunciar aos nossos direitos.”

Chayka finalizou o comunicado dizendo que “Em nome da propriedade Arizona Coyotes e de toda a nossa organização, gostaria de pedir desculpas a Isaiah e à família Meyer-Crothers. Estamos construindo uma franquia modelo dentro e fora do gelo. Por isso, faremos a coisa certa para Isaiah e a família Meyer-Crothers, nossos fãs e nossos parceiros. O Sr. Miller agora é um agente livre e pode perseguir seu sonho de se tornar um jogador da NHL em outro lugar.”

“Existe uma vítima aqui fora”

Muitos costumam ter em seus pensamentos o antigo ditado “garotos sempre serão garotos” para justificar certas ações. Em muitos casos, os atos de ódio e violência acabam sendo ignorados pois, na visão dessas pessoas, tudo pode ser justificado com a frase acima.

E, assim, esses mesmos indivíduos acabam anulando o sofrimento e traumas que as vítimas ainda enfrentam ou terão de enfrentar pelo resto de suas vidas. Isaiah é apenas um dos muitos adolescentes que precisam lidar com os comentários de que o que aconteceu com ele não passou de apenas uma brincadeira entre colegas. 

Em nota direcionada ao Arizona Coyotes, a mãe de Isaiah, Joni Meyer-Crothers, afirma que o fato de o time ter escolhido alguém que nunca se desculpou com seu filho pelo trauma acometido era humilhante. 

“Eu respeito a afirmação que ele enviou cartas de desculpa para todas as equipes da NHL. Mas não faria sentido se ele verdadeiramente sentisse remorso para enviar uma carta para o garoto que ele brutalmente intimidou tanto mentalmente quanto fisicamente? É uma surpresa que ele tenha enviado a todas as equipes da NHL uma carta, porque isso era para o seu próprio bem? Por mais que torçamos para que Mitchell eventualmente veja o dano que cometeu ao nosso filho, não vimos nenhum remorso. Mais uma vez, o incidente que continuou ao longo dos anos prejudicou [Isaiah] mentalmente de maneira significativa e sua organização está mais preocupada com Mitchell e seu sucesso no hockey. Na minha opinião, isso é fazer parte do problema. Há uma vítima lá fora que estava e ainda está nas mãos de sua 111ª escolha.”

O Arizona Coyotes possui grandes ideais que afirmam o quanto o time se importa com a diversidade no hockey. E em tempos como os que vivemos atualmente, a decisão do time em liberar Miller é muito importante. Mesmo tendo sido feita sob pressão, ela prova que a equipe ainda se importa com melhorias positivas na comunidade do hockey. 

Muitos questionaram sobre o quanto a decisão afetaria a carreira de Miller. Mas e a vida de Isaiah? Porquê a preocupação com a vítima sempre acaba sendo colocada em segundo lugar em casos como esses?

A resposta é simples: o preconceito ainda não é visto como um problema por muitos. Mas deveria. É uma problemática séria demais para ser tratada com tanto descaso. Muitos na comunidade do hockey entendem isso. Agora é necessário que os demais também entendam e façam sua parte. 

O que resta fazer é torcer para que comportamentos como os de Miller sejam cada vez mais escassos para que pessoas como Isaiah não sofram com o trauma pelo resto de suas vidas. E se a comunidade do hockey passar a se posicionar como os Coyotes em outras ocasiões, em algum momento a mudança vem, mesmo que devagar. 

Foto: Reprodução/Matt Kartozian-USA Today