Sobre liberdade de expressão, preconceito e outras reflexões

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Na primeira semana do ano foi noticiado que um jogador de hockey de 19 anos, Keegan Mitchell do Sherwood Metros, havia sido suspenso por ter violado a política de mídias sociais da liga Hockey P.E.I. (Prince Edward Island). De acordo com o relato do próprio jogador, um de seus companheiros de equipe foi vítima de comentários racistas — mais precisamente anti-asiáticos —, por parte de um dos adversários do Kensington Vipers. 

Em resposta à situação, Mitchell confrontou o jogador e deu-lhe um slashing nas pernas, motivo pelo qual recebeu uma punição — justa, segundo o próprio jogador —, de duas partidas pelo ato violento. Embora exista nas regras a previsão de uma suspensão automática de cinco jogos para casos de racismo, segundo estabelecido pelo Hockey Canada, tal punição só pode ser aplicada se a equipe de arbitragem ouvir este tipo de ofensa. 

No caso em tela, isto não ocorreu, o que gerou um sentimento de insatisfação em Mitchell. Assim, o jogador fez uma reclamação pública quanto à decisão em suas redes sociais, o que violaria o código de mídias sociais da organização. A punição, nestes casos, não tem um prazo específico. Esta não foi a primeira vez que uma situação semelhante aconteceu em partidas da Hockey P.E.I.

Em novembro, o jogador Mark Connors foi vítima de outro episódio racista em uma partida organizada na região. O atleta declarou que acredita que a organização responsável está demorando demais nos procedimentos investigativos do caso. Quanto maior o lapso temporal, como bem sabemos, maiores as chances de impunidade em casos assim. 

Por isso convido você para uma reflexão sobre as nuances do limite entre a liberdade de expressão do jogador do Sherwood Metros frente às políticas da liga do qual ele participa. Do outro lado, uma questão que vive sempre na sombra não só do hockey, bem como da maioria dos esportes: o racismo. 

De acordo com o dicionário de Oxford, “liberdade de expressão” significa “o direito de um indivíduo manifestar quaisquer opiniões em público”. Nos Estados Unidos ela está presente na famigerada primeira emenda da Constituição Americana, enquanto no Brasil figura no artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal de 1988. No Canadá, onde os fatos narrados ocorreram, ela está prevista na seção 2(b) da  Carta Canadense de Direitos e Liberdades.

A razão histórica deste direito é especialmente atrelada à existência de uma imprensa livre, possibilitando que os jornalistas forneçam notícias sem a influência de grupos políticos ou do governo. Entretanto, tal proteção também contribui para que o indivíduo consiga obter a verdade através de uma troca honesta de ideias, bem como atingir sua dignidade humana através do pensamento individual de cada um. 

Existem, é claro, limites. No caso do Canadá, campanhas de ódio estão incluídas entre as razões pelas quais a liberdade de expressão pode ser limitada, com o intuito de proteger indivíduos ou grupos que correriam riscos por conta da situação. Isto me leva ao segundo tópico presente na história: o racismo. 

No caso em tela, o jogador da equipe de Sherwood foi vítima de comentários anti-asiáticos, cuja incidência cresceu de forma alarmante especialmente depois do início da pandemia do COVID-19, cujos primeiros casos iniciaram-se na China. Nos Estados Unidos, por exemplo, os crimes de ódio e ataques contra asiáticos incluíram diversas formas de violência e até mesmo um tiroteio em Atlanta que deixou oito mortos em março do ano passado. 

Tratando-se do hockey, não é segredo para ninguém que o esporte é majoritariamente branco, e que as decisões envolvendo suas ligas são tomadas, em sua esmagadora maioria , por homens brancos de meia idade que possuem laços, sejam eles profissionais ou familiares, com outros homens em situações semelhantes de poder no mundo do hockey. 

Com isso, episódios envolvendo racismo — como recentemente na Ucrânia —, continuam acontecendo no esporte. Além disso, situações envolvendo xenofobia e homofobia acontecem  na NHL, fazendo um contraste com o slogan “Hockey is for everyone”. Se o objetivo de implementar campanhas de inclusão e erradicar o bullying e o preconceito no esporte, por que uma manifestação de descontentamento com a forma como uma investigação foi conduzida é censurada?

Veja bem, não posso afirmar que os comentários de Mitchell foram bem construídos ou tampouco que seus argumentos foram baseados em insultos ou ofensas, tendo em vista que não encontrei evidência dos tais posts em nenhum lugar. Entretanto, é necessário discutir a necessidade de uma mudança de paradigma na forma como a comunidade do hockey lida com este tipo de situação.

As repercussões da impunidade estão muito claras em casos como o de Kyle Beach [n/a: alerta de gatilho se você for acessar esta reportagem], onde todos, ou ao menos quase todos os envolvidos colocaram a conquista da Stanley Cup acima da integridade física e psicológica de um ser humano. Muito embora a responsabilização tenha sido alcançada, ainda que mais de uma década depois do fato, o caminho até chegar neste ponto foi doloroso e vitimizou mais jovens.

A masculinidade tóxica dos esportes profissionais faz com que ninguém queira se pronunciar sobre comportamentos abusivos. No hockey, este sentimento é ainda mais perceptível, com a ideia de que os jogadores são quase robôs, que só pensam em colocar o puck no fundo do gol e em mais nada. Eles dirigem os mesmos carros, usam os mesmos ternos e se casam com as mesmas mulheres, têm 2.5 filhos e se tornam parte do front office  ou da imprensa depois da aposentadoria. 

O sistema expurga quaisquer resquícios de humanidade, fazendo com que esses jogadores sejam apenas máquinas que servem para um propósito acumulativo nas organizações às quais pertencem [n/a: a nossa querida Gaby (@hockeynuisance) falou sobre isso no episódio do podcast no qual conversamos com ela, que você pode ouvir aqui no original e aqui na versão em português]. Expressar personalidade, portanto, torna-se tabu. Ao mesmo tempo, os jogadores são ensinados a colocar a necessidade de vencer acima de tudo, inclusive de possíveis valores morais. 

No vídeo acima, por exemplo, temos Connor McDavid dando uma resposta sobre a possível contratação de Evander Kane por parte da equipe da qual ele é capitão, o Edmonton Oilers. Precisamos notar também que a grande maioria das pessoas que acompanham a Liga têm McDavid também como o melhor jogador em atividade e a principal e mais importante face do esporte. Ele é basicamente o cartão de visitas da NHL enquanto liga e do hockey no gelo enquanto esporte.

Ao diminuir as preocupações da torcida acerca da possibilidade de terem um indivíduo que apresentou um cartão de vacinas falso e está sendo investigado por várias formas de abuso e violência contra sua ex-esposa (uma das alegações é a de que o jogador supostamente a ameaçou com uma arma de fogo), McDavid demonstra não ter empatia. Afinal, foi justamente a necessidade de colocar o sucesso do time acima da dignidade de uma vítima que gerou 11 anos de impunidade com relação ao Chicago Blackhawks.

Então, retornando ao caso que abriu este artigo, poder criticar abertamente uma situação com a finalidade de evitar a impunidade não seria uma coisa positiva? O objetivo não é, portanto, alcançar alguma forma de responsabilização? Além disso, como podemos esperar que seja construída uma cultura positiva quando o órgão que deveria proteger e investigar reprime questionamentos? 

O direito de poder se expressar livremente é uma das grandes conquistas do Estado democrático de direito. Por isso, utilizá-lo para promover a inclusão de grupos minoritários e promover os direitos humanos é concretizar ainda mais a sua função social dentro da democracia, visando, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana. 

Ele torna-se, portanto, uma ferramenta de mudança muito importante. Porém, até que o cultivo de empatia e o fim da impunidade atinjam o hockey em cheio, o slogan “Hockey is for everyone” não vai deixar de ser apenas uma tentativa de capitalizar em cima de grupos minoritários, sem gerar impacto real nas suas comunidades. 

 

(Foto: NHL.com/Reprodução)