Há duas semanas, o mundo do hockey foi surpreendido mais uma vez (será que, a esse ponto, deveríamos nos surpreender?) com um chat privado entre jogadores vazado na internet. Brendan Leipsic, até então jogador do Washington Capitals, seu irmão e outros amigos – também jogadores ou ex-jogadores de ligas menores – acharam normal depreciar mulheres, incluindo esposas e namoradas de colegas de times.
Além das mulheres, Leipsic e companhia também ofenderam colegas de times e até jogadores de outras franquias em suas conversas. Quando descoberto, Leipsic precisou fazer uma nota de desculpas. Mas sejamos sinceras, aquela nota não foi ele quem escreveu e com certeza ele não está arrependido.
A pior parte é ver gente “passando pano” dizendo que ele teve sua “privacidade invadida”. Oi? E as fotos que eles compartilharam nas conversas?
Bem, se você é desse tipo de pessoa que acha que ele está certo, talvez seja interessante ler um pouco deste Manual.
Meu privilégio, minhas regras
Esse caso, que não é o primeiro e certamente não será o último, leva-nos a tentar entender como funciona a mente desses jogadores.
Imagina só como é ser um homem branco, de origem privilegiada e jogar um esporte elitizado? Provavelmente significa sim que eu poderia falar abertamente das minhas conquistas amorosas como objetos. Ou melhor, sexuais, porque ninguém ali falou de relacionamento sério.
“Ora, se desde a infância fui colocado em um pedestal porque era modestamente melhor do que as outras crianças em um jogo no gelo, isso significa que eu realmente tenho o direito de me safar das tentativas de pessoas invejosas que gostariam de me ver falhar!” Afinal, fazer parte do 1% de um esporte competitivo é uma coisa a ser celebrada. “Todos os homens gostariam de estar no meu lugar e todas as mulheres me desejam.” Engraçado que esse tipo de pensamento sempre vem de homem, não é?
Falar de assuntos alheios ao coronavírus enquanto estamos no meio de uma pandemia sem precedentes parece tolice. Mas a ausência de esportes para nos distrair fez com que uma conversa entre amigos tomasse proporções gigantescas.
Se você vem de uma cidade pequena ou tem familiares que moram em uma, sabe como funcionam as coisas. Todo mundo conhece todo mundo. Alguns moradores têm um status diferenciado, seja pelo cargo que ocupam ou pelo dinheiro que têm em suas contas bancárias.
A comunidade do hockey é como uma cidade pequena. Ou você já jogou com fulano, ou conhece quem já tenha jogado com ele. Não existe isso de não se conhecer, mesmo que não seja amigo íntimo, dificilmente as coisas passam despercebidas.
No caso de Leipsic, contudo, a situação é ainda mais grave. Veja bem, Winnipeg tem pouco mais de 750 mil habitantes e é uma das maiores cidades do Canadá. Contudo, ao mesmo tempo muitas coisas funcionam como uma cidade pequena.
Quando rapazes conhecidos por muita gente mostram sua pior faceta, há de se esperar uma resposta da sociedade em que vivem. Afinal, muita gente estudou com eles ou conhece seus pais ou até mesmo jogou hockey na infância com um deles.
O que nos leva a pensar: quando foi que alguém virou para esses meninos e falou que por serem minimamente competentes em um esporte, eles teriam o direito de menosprezar outros seres humanos? Será que eles estavam falando coisas assim de mim só porque eu emprestei um lápis para um deles na aula de Química no primeiro ano do colegial?
Atletas de alto rendimento são tratados de forma diferente do que eu e você. Especialmente se eles são homens e mais ainda se são brancos. Isso acontece não só no Brasil, como no Canadá e eu desconfio que até em Papua Nova Guiné. (Ou talvez não por lá, confesso que não me dei ao trabalho de confirmar essa afirmação.)
Mas será que ser acima da média em um mero jogo faz com que alguém seja automaticamente melhor do que uma pessoa que não tem inclinações esportivas? Ora, se eu sou boa em xadrez (meramente uma hipótese, já que nunca joguei xadrez na vida) eu sou uma nerd, mas se Fulano é bom em futebol ele merece ter o mundo aos seus pés?
Módulo 1: Como não ser um babaca 101
Já que o programa de formação destes jovens jogadores de hockey não trouxe o módulo Como Não Ser Um Babaca 101, eu quero ensinar um pouco para vocês hoje. Esse é um curso essencial na formação de todo jovem enquanto transita para a vida adulta.
Aliás, esta parece ser uma carência de currículo comum a outros lugares, já que alguns dos escândalos envolvendo atletas do esporte (e não estou falando só do hockey, mas de muitos outros também) são particularmente tenebrosos.
Longe de mim generalizar todo jogador de hockey como um babaca, pelo contrário, acho que eles são, em sua grande maioria, caras bem legais que têm penteados duvidosos e sorrisos banguelas. Entretanto sei reconhecer que o esporte tende a ser um ambiente hostil não só para mulheres, assim como para pessoas LGBT e demais minorias.
Afinal, você torcedora que se identifica como mulher, quantas vezes não foi questionada se gostava de determinada equipe apenas por causa da aparência de seus jogadores? Diferenças de gênero por acaso fazem com que uma pessoa entenda melhor o que é Corsi?
Eu, particularmente, acho muito engraçado como a minha feminilidade me impede de saber como funcionam as penalidades da NHL, assim como saber quem foi a escolha do terceiro round que o Atlanta Thrashers fez em seu último draft (foi Julian Melchiori, caso você não saiba). Como Não Ser Um Babaca 101 me parece ser uma necessidade na grade curricular não apenas dos atletas, mas também de muitos de seus torcedores.
O resumo da ópera é: ser bom em uma coisa não te dá um passe livre para ser um babaca.
Muito menos para falar coisas absurdas de pessoas inocentes que estão apenas vivendo suas vidas e sendo felizes. Misoginia não é engraçado, racismo não é engraçado, xenofobia não é engraçado, homofobia não é engraçado. E ser um babaca também não.
Para concluir nosso módulo introdutório de Como Não Ser um Babaca 101, eu decidi trazer algumas sugestões para jovens atletas que estão sem o que fazer na quarentena, já que não têm filho para trocar as fraldas ou ajudar com o dever de casa, a fim de evitar que eles percam tempo falando absurdos em grupos de conversas. Vejamos:
- Ler um livro que não envolva hockey, esporte, autoajuda ou que tenha figuras (caso você viva em uma caverna e não saiba o que são livros, estamos abertas a indicar boas leituras);
- Treinar coreografias do Tik Tok (além de ser uma atividade física divertida, vai te fazer usar a criatividade para algo melhor do que ofensas gratuitas);
- Aprender a tocar violão e fazer uma live só com o repertório do Nickelback (acho que essa só funciona para canadenses – ou para o vestiário do Carolina Hurricanes);
- Tricotar botinhas no formato de patins para seus pets; (ou, se não tem um pet, arrume um. Vai ser uma boa companhia e você vai aprender como é cuidar de alguma coisa que pode te ensinar o que é amizade de verdade);
- Escreva um livro (tenho certeza que você tem mais para contar do que com quem você dormiu no verão de 2011);
- Literalmente qualquer coisa que não envolva comentários asquerosos e preconceituosos.
Se mesmo com tantas opções de coisas para fazer o jovem atleta ainda decidir ser um babaca, ele merece sim sofrer as consequências por isso. Como a pessoa adulta que é. Afinal, jogar hockey em alto nível pode ser a realização de um sonho de criança, mas o mundo em que vivemos é o mundo dos adultos.
Lembrem-se sempre: não é legal ser babaca, então não seja um. Eu juro que é bem fácil, é só você tentar, ou melhor, não ser.